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quinta-feira, 15 de junho de 2017

Palco sem fundo


Havia um palco no meio da feira.

Ouviam-se vozes que vinham de dentro do casulo, três faces cobertas de pano e uma descoberta, um palco afinal.
Aproximámo-nos vindos detrás e, portanto, só se ouviam vozes e as cadeiras da assistência, meias cheias e meias vazias, gente muito silenciosa, dividida entre uma grande concentração e uma posição de defesa suspensa, à espera do que o orador possa dizer ou à espera que o orador diga alguma coisa que a gente entenda.
Reconheço que a postura da audiência me deixou curioso e eu espreitei para lá do casulo, e havia três senhores sentados em três cadeiras, muito bem vestidos nesta lógica muito atual do chique casual,

(muito diferente aliás do tipo casual que vem de fato mas tira a gravata, aliás presenciei a um movimento de escárnio, acerca desta moda há uns dias atrás numa festa de gente que oscilava entre o casual e o chique, mais ou menos no princípio de que os casuais não são chiques e os chiques não são casuais)

E a voz tinha nome, um nome sonante que eu já não me recordo, mas tenho a certeza que foi embaixador ou ministro, ou até as duas coisas, e ele falava do nosso papel atlântico, daquela prosa renascentista, colonial ou até de Estado Novo, agora obviamente com uma dimensão mais humanista, de Portugal e do Brasil e, agora que tudo à volta da Europa estava a explodir, muitas vezes porque os europeus se tinham portado mal, sim, a culpa era da Europa e o papel de Portugal podia quase se sobrepor a de uma grande potência, unindo as pontas todas e transformando-se num dragão da europa perdida e amedrontada.
A audiência não tugia mas sentia-se um desconforto entre os que falavam e os que ouviam. Desconforto dos que falavam porque, do lado da assistência havia pessoas que queimavam o fim da tarde de verão com um “não havendo mais que fazer”, já agora papa-se um ex-ministro e, se der tempo, fazemos umas perguntas inteligentes – nunca se sabe se aparece a televisão – ou atira-se uns piropos para o ar.
Desconforto da assistência porque ainda não tinham percebido se era o momento de atirar piropos ou de fazer perguntas inteligentes.
Eu afastei-me, com receio de que me perguntassem a minha opinião e eu ser incapaz de elaborar uma resposta inteligente.
Afinal de contas, não era uma feira qualquer, estávamos na feira do livro e sempre achei que, subindo a alameda haveria de encontrar um livro que libertaria em mim a minha vocação atlântica.
Mas a malta de calções que circulava alameda acima, de pele rosada e sotaques diversos tinha opinião, bastava piscar os olhos e esperar pelos sorrisos de quem foi abençoado por férias ao Sol e ao vento.
Mas eu subi a alameda a pensar demais, tão concentrado que não me lembro de encontrar um livro que me acalmasse o âmago.
 O nosso fascínio, a nossa atração é sermos um país de costumes brandos, periférico quanto baste, com uma cultura europeia, mas tolerante aos tipos ricos, adeptos confessos da não-violência e moderadamente desenvolvidos para não pedirem mais subsídios mas para não atraírem os pobres do mundo à procura de emprego, uma culinária muito próxima da parisiense mas a um terço do preço e quanto menos falarmos de oceano, menos a malta se lembra que Marrocos é já ali ao lado
Nem mesmo quando já não se trata de uma previsão ou de uma visão estratégica, é apenas o destino.
Eles já andam por aí e eu, com aquelas previsões e com aquele vento, não fui capaz de comprar um único livro

Afinal de contas o palco não tinha fundo e as crianças tinham saltado para o mar.


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