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sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Terminal C


O terminal C do aeroporto de Frankfurt é uma cápsula de adjetivos.
Indiferença,  desconfiança, rudeza e caos.
Se tínhamos duvidas de que partíamos para um mundo novo, o germânico C logo nos colocou em período de quarentena.
Brusquidão, fronteiras e controlo.
E novas cores e novos cheiros, uma antecâmara de caos para o outro mundo.
Will You stand in the middle of the corridor?
I’m just trying ...
So,  have a Nice day.
Ao meu lado estende-se um tipo que rosna com o olhar, olhos assustados e pose de Shik, uma barba rasa que insiste em não reagir às intromissões das mulheres no seu espaço de conforto.
A mulher pede passagem...e ele não reage mas, no fim, e perante a ira da mulher europeia, desperta...
Ou compreende (afinal não é fácil perceber a mulher europeia)
Não lhe perguntei a origem nem a casta, claro que não porque ele não me reconhece como interlocutor.
Ele bate com força na cadeira da frente quando o compatriota se reclina para trás.
A hospedeira esforça-se por servir de intérprete e ela acalma-se. E a segunda vez na última hora que as mulheres europeias o torceram. Mas afinal de contas ainda estamos num avião europeu.
O meu vizinho do lado ( que é contemporâneo e compatriota do vizinho da frente) voa com um boné do lakers na cabeça, mas não se atreve a desafiar as novas tecnologias, rugindo perante esta nova faceta da mesma Índia.
Não sei se o boné era mesmo do lakers, mas tinha aparência.
(Tomem nota que, a partir de hoje, todas – mesmo as mais precisas ou inócuas –afirmações ou descrições terão sempre múltiplas interpretações, serão sempre relativas e condicionais).
Natureza hindu em estado puro.
E cheira a caril na fila 71, no lugar k do Airbus A 380 800 e o hospedeiro esforça-se com brio em servir o hindu, evitando agilmente equivocar-se no prato e na raça.
Pela diversidade evidenciada a bordo, e o esquema de prioridades politicamente corretas dos europeus, vamos esperar pela omissão do porco, da vaca e, só depois...
Já são oito da noite na fluida hora de  Delhi apesar de estarmos ainda a atravessar a Roménia.
E o nosso vizinho nem come e continua a recusar a convivência pacífica e eu olho para ele com ostensiva curiosidade de um ser esperançado.
Ele olha em frente para a sua televisão transparente espreitando o seu filme de bolywood enquanto o seu vizinho e compatriota se entretém com um policial americano e aproveita para se recostar outra vez.
Mas apesar do vizinho do lado não falar, o nosso relacionamento melhora de minuto a minuto, sempre que, após mais uma recusa de comer, esfrega umas sementes entre a palma das mãos e coloca-as discretamente na boca.
Sobre a Croácia ele insiste em fincar os dois cotovelos sobre o apoio de braços partilhado, mas depois de atravessado o Mar Negro e a caminho do Cáspio ele já me concede a parte traseira do apoio e eu começo a acreditar que vamos ser amigos antes de Delhi.
Longe já vai o terminal C que, na lógica germânica, funciona como um espaço de reinterpretacao.
Um ancião de barbas brancas – também ele sikh – turbante preto, mãos longas e magras e um anel que ele preza como se representasse todo o significado naquela mão direita, flutua no corredor do A380, entre as filas 66 e 90 e, com ele, uma auréola de visão e karma.
Enquanto no outro corredor os hospedeiros iniciam as vendas a bordo.
Sem surpresa, sem sucesso nada compatível com a filosofia despojada que predomina na nave.
É o meu vizinho espreita para o meu concerto da kate perry
Estamos a chegar a Delhi e o meu vizinho toca-me no braço e aponta para o mapa assinalando Dehli, it is my home, I am returning home, e abanou a cabeça e juro que lhe descortinei uma lágrima.
E tentou-me explicar tudo aquilo que não tinha falado na viagem.
Mas o nosso esperanto não era suficientemente compatível e trocamos sorrisos de compreensão e fiquei agarrado no número três. Talvez três filhos a sua espera, ou três anos que esteve fora
Apenas uma certeza é essa era corroborada pelo boné...ele vinha mesmo da América.
Esta é a sensação mais esperada deste povo. Custa em encurtar as distâncias mentais, mas arrisco-me a adivinhar que tende a entranhar.
E fiquei a imaginar a vida do homem, antes e depois do voo LH 706.




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