Pesquisar neste blogue

sábado, 29 de novembro de 2025

O velho guia, uma versão revolucionaria da historia e a jovem burguesa

 


Na Secretaria da Educação Pública, Rivera trabalhou quatro anos numa comissão  de serviço patrocinado pelo então ministro Vasconcelos, nos finais dos anos vinte, numa época em que o poder procurava harmonizar a constituição de 1920, que sintetizava as principais reformas reivindicadas pelas diversas fações do movimento revolucionário, com as diferentes visões da sociedade dos diferentes grupos corporativos mais conservadores ou mais liberais que a república criou e ainda com a realidade que normalmente contraria as  convicções utópicas do homem bom.
Ao longo dos anos e décadas seguintes, os vários regimes da república e a irreverência ideológica de Rivera aprenderam a conviver e, nas dezenas de murais que foram pintados naquele local, nasceu uma visão muito própria da história do México que, mesmo com divergências ideológicas substanciais com os regimes e com as lições da historia moderna, se tornou numa espécie de visão oficial da história da nação.
Já no antigo colégio de San Ildefonso, os temas no anfiteatro bolívar são a forma abreviada do mais importante da história da humanidade, segundo o autor.
A cena parece reproduzir a ideologia de Vasconcelos, a mistura das raças, a educação pela arte, a vida segundo as virtudes da religião judaica cristã e o uso sábio das ciências para controlar a natureza e para que o homem encontre a verdade absoluta.
Parece que é assim, mas nós não vimos, a sala estava fechada para ensaios e a aflita funcionária do museu que, tal como a maioria dos mexicanos não gosta de dizer não, encolhia-se na falta de autoridade para nos deixar entrar. E sorria, pesarosa, sempre podem visitar as criações dos outros muralistas, e sorria outra vez, ela parecia gostar de finais felizes.


E os murais de Siqueira e Orozco podem não ter a mesma vertigens do que os de Rivera, mas têm a mesma ambição e se o destino da nação dependesse apenas da intensidade criativa da inspiração e vontade dos mestres, há décadas que o México tinha destruído a velha ordem.
As obras de Rivera procuram espalhar a convicção utópica de que o homem consegue transformar criativamente a sociedade e alcançar assim.um futuro melhor e mais justo.
A visão política do povo mexicano pintado a partir do desenvolvimento de uma iconografia revolucionária para o México, harmonizando os ideais revolucionários e a herança índia da cultura mexicana.
São visões grandiloquentes, excessivas porque nada para ele pode ser menos que épico como os Zacatecas que produzem minério, a cor de marte que na mitologia grega romana significa guerra, a guerra e o trabalho escravo, os pueblos fantasmas de Pedro Páramo, o Gringo Viejo de Carlos Fuentes com Gregory Peck and Jane Fonda que fala dos perdidos na revolução ou como se perdeu a revolução, David e Golias ou a convicção de que o inimigo pode ser muito grande mas que nós podemos vencê-los com armas rudimentares 
Mas hoje, nas arcadas da Secretaria de Educação Pública, a visão contemporânea da jovem  burguesia mexicana mestiça, muito maquilhada, de top agressivo e que se recusa a entender o inglês, língua oficial da visita guiada,  vergou a militância do velho guia popular, portador da visão  revolucionária oficial e devidamente sindicalizado que pareceu subitamente desinteressar-se dos momentos épicos de Rivera sempre que a jovem esboçava algum gracioso protesto ou lhe respondia com visível desprezo que era de cá, da 
Cidade.
E o velho guardião do pensamento revolucionário perdeu a eloquência e tornou-se subserviente, algo que Rivera nunca perdoaria. Nem nós!
E assim nós e as pinturas de Diego abandonamos o patético guia e a petulante menina da cidade, e levámos a arte do génio para o piso superior do pátio interior da secretaria da educação.
Como escreveu Octávio Paz, na entrada do edifício da secretaria da educação pública " A vida não é de ninguém, todos somos a vida - pão de Sol para os outros, para todos os outros que somos nós "
Ninguém fica indiferente à intensidade dos sonhos desta cidade.






quinta-feira, 27 de novembro de 2025

La Llorona

 

Na calle da República da Guatemala, os dois mendigos estavam deitados na berma do passeio cobertos por uma mesma manta, tapavam-se até ao queixo e conversavam animadamente sorrindo de boca desdentada.
A multidão das nove da manhã, caminha com a pressa de quem vai trabalhar, e também há colarinhos brancos no centro histórico, mas também de quem não quer dar pela presença dos dois homens deitados na berma do passeio, mas também eles não parecem dar pela presença da multidão, uma indiferença recíproca, aliás muito justa. 
Eles também riem para sobreviver na manhã amena, a olhar o céu entre as sombras dos prédios.
Um pouco mais á frente, a freira de azul-bebé e mascara preta vendia bolos secos encostada ao prédio, enquanto o resto da cidade se agita na manhã precoce, entre bancas de rua que vendem fritos que cheiram a pequeno almoço e uma pick up da policia que circula velozmente, com dois policias em pé na caixa aberta traseira.
Ao nosso pequeno-almoço trocamos panquecas e café de olla com a história recente do México, afinal de contas o café Tacuba é um café histórico, uma conversão de um antigo convento em 1912 , certamente expropriado à igreja pela revolução.
Uma imagem feliz do México, um país sempre em revolução, mas que, no seu íntimo, só quer viver feliz, livre e com estilo, como o café histórico de Tacuba.
E, como sempre, também hoje, o Zocalo mantém-se agitado, convertido em marcha de policias ou de manifestantes ou apenas de transeuntes apressados.
Mais quinze minutos de metro, e mudamos novamente a perspetiva enquanto as primeiras carruagens, só para mulheres e crianças até treze anos – para as proteger de uma praga chamada assédio - passam por nós, na plataforma, a caminho de Buenavista e nós a questionar (sempre a questionar, quais mentes inquietas!)  se o assédio começará tão cedo assim, treze anos não é mais do que uma adolescência moderada.
E a nova perspetiva de regime desfila nas salas do museu de antropologia e neste magnifico edifício dos anos sessenta do século passado, a História é mostrada da forma como o México moderno escolheu para afirmar a sua identidade, em que o regime do partido quase único que herdou o centralismo dos séculos anteriores em décadas no poder absoluto se vê (mais do que isso, se projeta) transfigurado no mundo azteca e ao contemplar-se, afirma-se.


Procurando não pensar que parece ter sido uma profunda angústia existencial que levou os poderosos aztecas a entregar-se, de uma forma dócil, ao sacrifício coletivo.
Portanto, regressados outra vez ao contraditório, quer  evoquemos o destino deles quer a sofisticação do património construído.
E, sem dúvida, ao esmagador que nos habituou a cidade.
Mais tarde, em Xochimilco, as últimas superfícies aquáticas que sobreviveram aos séculos de aterro do lago salgado, abandonamo-nos ao lúdico e ao universo do fantástico e das lendas e aprendemos que o axolote, um anfíbio pouco dotado para a beleza e para a utilidade prática, é,  afinal de contas um ser humano que, ao transformar-se, procurava fugir aos sacrifícios humanos maias, apesar de haver quem diga que os humanos se sacrificavam voluntariamente, especialmente se eram derrotados de guerra
Apesar deste caminho para a liberdade, o axolote não tem tido vida fácil, especialmente desde que descobriram que o mesmo possui propriedades curativas contra o cancro e a favor da vida eterna.
Na ilha das bonecas choronas, um velho local terá encontrado uma criança afogada nos canais e, para acalmar os espíritos, juntou uma grande quantidade de bonecas para acalmar os espíritos, que pendurou nas árvores de uma ilha desabitada.
O velho morreu, mais tarde, na ilha das choronas, em circunstâncias misteriosas.
Na voz dos mariachis que nos abordaram, no seu barco a remos, ecoavam os sons aflitos de Chavela Vargas e, sem surpresa, ouvimos La llorona, o último latido da água.
E o miúdo que remou como um herói três horas a fio, recebeu a nossa propina e beijou as notas de pesos enquanto se benzia de gratidão como se o universo tivesse sido criado com um propósito divino, e tudo o que acontece ser bem capaz de fazer parte desse plano. 




quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Noguchi’s Butterflies by Patti Smith

 

Segundo o poeta Octávio Paz, a relação entre os Aztecas e os Espanhóis não é simplesmente uma relação de oposição: O poder espanhol substitui o azteca e, desta forma continua-o. E da mesma forma o México independente, explicita e implicitamente prolonga a tradição azteca-castelhana, centralista e autoritária.
E, por isso mesmo, Cortez decide construir a capital do império colonial dominando as ruínas da capital indígena por ele destruída, apesar desta ilha não ser o local mais adequado para construir uma futura metrópole, sobre um lago salgado.
E ninguém mais questionou a decisão política de Cortez.
Hoje no Zócalo, os manifestantes marcham  ( todos os dias acontece algo no Zócalo) sobre a calçada que se afunda lentamente, junto as fachadas que se inclinam sem remédio,  sejam eles símbolos do poder passado ou presente; as ruinas da recentemente desenterrada pirâmide do sol, a catedral metropolitana e o palácio do governo e sobre o mais recente monumento os 43 estudantes desaparecidos em 2014, quando se dirigiam para uma manifestação na cidade do México, num autocarro por eles sequestrado. 
Calcula- se que tenham sequestrado o veículo errado.
E todas as tragédias e as misérias do México parecem desembocar todos os dias no Zócalo.
Por isso mesmo, a bandeira permanece sempre no centro da praça e, nos dias mais ventosos, esta forma de pátria agiganta-se, para dar sombra a todos os que correm para o centro para sentir o grito de Dolores.
Outras vezes, quando se liberta a serpente, simplesmente para os assombrar
Nas redondezas e a norte da praça, Lagunilla é um mercado ao ar livre.
Ou antes, é um bairro que se transforma em mercado, todas as manhãs.
Coabita com o poder centralista que emana do centro histórico, mas combate-o todas as manhãs em que os feirantes montam as tendas no meio da rua, ou presas nas fachadas da cidade que se afunda porque, enquanto não nos afundamos é preciso viver, e os mestiços têm uma visão do México mais pragmática do que as elites e, frequentemente, tão mais liberal quanto subversiva.
Em Lagunilla, paredes meias com a pátria intocável, eles vivem demasiado atarefados para se deixarem assombrar.
Mas bastam trinta minutos de um metro que respira melhor do que a superfície poderia antever, para chegarmos aos bairros do sul e a Coyoacan e descobrimos afinal que nem toda a cidade é esmagadora.



No bairro de Coyoacan, os transeuntes passeiam os cães nas ruas circundadas por casas térreas com quintais que se escondem nas arvores que invadem todos os espaços livres, respira-se introspeção nos pátios tranquilos das livrarias e dos centros culturais e, até os vendedores de rua, parecem oriundos de uma qualquer aldeia perdida nos cumes nevados que podiam envolver a cidade.
E em Coyoacan viveu Frida Khalo, o culto da irreverência e sacrifício, e o mundo imaginário que ela via "e se eu pudesse dar-te uma coisa na vida, eu gostaria de te dar a capacidade de te ver, a ti mesmo, através dos meus olhos"
E, apesar de apenas a trinta minutos do centro histórico, este bairro parece respirar uma descontração tropical que atravessa os restaurantes abertos, os jardins com lagos no seu centro e as estatuas dos coiotes que não assustam nem os animais de estimação nem os visitantes de Coyoacan.
E o dia esvai-se sem pressas, ao ritmo de um gelado que se derrete numa tarde amena de outono, entre mercados e as memórias dos locais de Frida e Diego, almoços que demoram ao ritmo de um peixe que assa em forno brando e de explosões de cores nas paredes desta aldeia plantada no meio da metrópole, um banho de azul profundo que se entorna, em cada esquina, sobre os muros cor-de-rosa que espelham os sonhos mais doces da cidade.
E depois de conhecida a intimidade de Frida, espalhada pela casa dos pais dela e pelo retiro do casal, até o temperamento de Diego parece excessivo aos olhos de uma ilustre visitante da cidade que questiona a grandiloquência de Diego, “para ele nada pode ser menos que épico, prefiro a aventura tão íntima e solitária de Frida”, nada mais do que uma opinião, bem entendido.
No parque central do bairro, a luz do fim de tarde desvanece-se nos sons dos esqueletos vivos que anunciam uma peça de teatro gratuita, dos pregões dos vendedores, dezenas de histórias iguais às da velhinha que vendia palitos para bolos, mas que só tinha feito cento e vinte pesos no dia inteiro e ela que insistia que tinha de levar algo para casa, ela que fazia os palitos, o filho que os pintava e ela que os trazia de uma aldeia a mais de quarenta quilómetros.
E nós compramos-lhe palitos para bolos para alimentar uma família grande na noite de Natal, e triplicamos a sua receita do dia, mesmo assim pouco mais de vinte euros.
Também há vidas amargas no lado doce da cidade, gente que, se pudesse, não se ofereceria para tais sacrifícios humanos.
Ao anoitecer na mesma praça central de Coyoacan, onde tudo acontece a qualquer hora, celebra-se uma cerimónia do culto dos deuses e rituais de purificação pré-hispânicos, que curam todos os sofrimentos do dia e perdoam todos os séculos de pecado dos barbudos, quiçá os deuses da ira.
E o que seria de mim sem o absurdo e o fugaz?
Frida e as suas borboletas, claro!



sábado, 22 de novembro de 2025

o mural da revolução mexicana

 


E ao segundo dia demos de frente com o Pancho Villa, pendurado na rua do Madero, o que também faz sentido pois Francisco era o seu presidente e foi ele que levou a revolução para o palácio do governo na capital, a partir de Cidade Juárez, e era um diplomata cercado por violentos pistoleiros, por vezes capazes de atos de ternura para com as mulheres e com os companheiros com a mesma naturalidade com que fuzilavam todos os oficiais inimigos, feitos prisioneiros.

E Pancho sempre foi fiel ao diplomata Francisco e terá chorado com o seu assassinato, o primeiro de uma longa lista de revolucionários, mártires e vítimas da própria revolução, que tragou todos os revolucionários até uma espécie de meia vitoria final, dez anos depois, lá para os anos vinte do século passado.
Mas a entrada triunfal dos primeiros revolucionários na cidade do México, nos anos dez, um desfile militar em que milhares de bandoleros, cobertos de pó e de ruralidade, se sentiram finalmente um exército, ao longo do muito francês passeio da reforma, faz parte do imaginário dos indígenas e dos pés descalços do México.
E, por isso, na muito elegante casa dos azulejos, onde os pequenos almoços se celebram com iogurtes de frutas frescas e guardanapos de pano, existe um altar construído para o dia dos mortos, uma oferenda por Pancho.
No Zócalo, prepara-se uma demonstração do México corporativo dos pueblos que acampam nos confortes da catedral para exigir a anulação de uma eleição não identificada, sob o olhar benevolente de centenas de policias que por ali sempre andam, porque no Zócalo, o centro absoluto do México sempre protegido pela bandeira, estão sempre a acontecer coisas, uma sucessão de altares, palanques, palcos ou apenas multidões que gritam, cantam, festejam e protestam amiúde, o pulmão e as entranhas da nação mexica.
No interior da casa dos azulejos, vive-se uma palete de cores quentes, um mural que forra a sala de uma atmosfera nordestina, com catos que anunciam o deserto e os ranchos de gado, uma memória da época em que a casa doa azulejos era o jockey club da cidade, uma visão romântica de um México rural, sem pressas e impregnado de uma música inconfundível.
Aberta a porta do exterior, não há mais lugar para a farda imaculada dos empregados de mesa e impera o mundo dos amarrotados.
E ao segundo dia demos de frente com os muralistas, os revolucionários e por vezes dissidentes (com o partido e, amiúde, também entre eles próprios e com os inseparáveis amigos) Rivera e Siqueiros, e entrámos num universo grandiloquente das histórias contadas em pinturas de parede.
No Palácio das Belas Artes vive o homem controlador do universo ou a dicotomia dos mundos capitalista e comunista em 1934 aos olhos de um revolucionário que não se refugiou nos dogmas da ideologia, mas pintou a utopia com um entusiasmo vitalício e a convicção utópica de que o homem consegue transformar criativamente a sociedade e alcançar assim um futuro melhor e mais justo.
E por isso fascinou-se com a indústria moderna da América do Norte e foi expulso do partido como reacionário por receber encomendas dos ditadores mexicanos e dos capitalistas americanos, mas recusou-se a retirar a figura de Lenine do mural que Rockefeller lhe encomendou para o seu centro e o Mecenas destruiu o seu mural. E Diego reproduziu-o no palácio das artes como o controlador do universo (que ele encarnava em si mesmo) como a maior das utopias de uma mente inquieta que se inspirava no contraditório, mesmo que, na dicotomia que pintou, nunca fosse possível identificar uma cronologia credível.
Sequer.
Na outra parede, no painel de Siqueiros, uma única imagem da conquista espanhola, parece resumir todas as guerras da história mexicana.
Pelo menos na perspectiva do professor que explicava aos alunos que a colonização espanhola e o massacre indígena, explícito no mural de Siqueiros, encarnava (implicitamente) o sofrimento de todas as guerras do povo, contra os invasores espanhóis, os franceses, os americanos, a guerra da reforma e a revolução, essas últimas sem inimigos externos, senhor professor,  e os alunos, muito atentos, pareciam algo confusos com tamanha audácia do professor, certamente entusiasmado pelo génio  dos autores, afinal de contas todos os momentos são bons para realçar as cores da  nossa bandeira, mesmo quando as cores vividas da imaginação explosiva dos muralistas tendem a estimular um excesso de imaginário fantástico.
E, no segundo dia, tivemos a certeza de que no México não há outra realidade senão a alma mestiça. Entende-se, caminhando pelas ruas que o país foi construído por camadas e a raça mestiça transforma-se no sinal congénito deste povo. 
Basta andar pela cidade para perceber que a mistura se fez pela imposição sucessiva dos mais poderosos, desde os aztecas até aos ditadores mexicanos, de sacrifícios não voluntários aos mais desfavorecidos e pelas revoltas sangrentas dos descamisados, sempre uma violência desmedida a partir da qual se apurou o sentido de mestiçagem que povoa o presente da nação.
Mas a generalidade dos transeuntes é doce, amistosa e cortez (não é esse cortez, até porque a generalidade dos mexicanos com voz o trata por “ele”, apesar de saberem que Cortez é o seu pai biológico, eventualmente Moctezuma a mãe deles)
Faz parte do imaginário literário deles a coexistência entre uma violência intestina e uma ternura imensa.




E no museu que foi construído para acolher um mural que tinha sido pintado num hotel destruído pelo terramoto, Rivera conta uma versão da história do México em três níveis na horizontal, uma ironia critica à sociedade mexicana dos finais do século dezanove, outra dos sonhos do povo e a terceira a história sonhada e os desejos de realidade, normalmente preenchidos de paixão, devoção e sangue.
Uma história também contada na vertical em trezentos anos de linhas impercetíveis, desde a conquista ao regime de Porfírio Dias e a soberba afrancesada dos ricos e poderosos, depois a Revolução e muitos metros de tinta até à história moderna. 
As imagens são tão fortes que temos dificuldade em encontrar os personagens certos e distinguir a narrativa do fantástico.
Abandonados os sonhos de arte nova (e de uma ambicionada grandeza) ao pequeno-almoço, almoçamos no pátio interior, depois de atravessar um tronco de pastor à porta e um corredor de fumo que é a versão popular de uma cozinha que nada esconde da sala de comer, sim, um lugar de modéstia mas que não dispensa os mariachis e resume a vida da gente amarrotada mas generosa, dos botecos de rua, das ruas dos ofícios, desde a rua dos eletrodomésticos, ferragens, lojas de música, de fotografia e esporadicamente as ruas pedonais das grandes marcas,  uma versão muito legitima da cidade sentada diante de nós, em mesas de madeira simples e paredes de amarelo intenso.
Todos ao redor de um taco pastor e de um pote de água de sabores, hoje a pepino, laranja e mais sabemos lá o quê. 
Quando regressamos ao crepúsculo do Zócalo, mais uma interpretação sobreposta da História, desde Moctezuma até à independência, estamos prontos para nos submetermos aos rituais aztecas de limpeza, entre os espólios coloniais e indígenas, sem alarde, mas com vigilância ativa sobre as intenções dos transeuntes e sobre os templos recém escavados.
E diz, quem se purificou com os fumos sagrados que, mais do que uma cura é uma viagem mística aos confins das crenças antigas, com surpreendentes resultados terapêuticos, frutos de um conhecimento moderno.
Entre a fachada lateral da grande catedral metropolitana e o coração de Tenochtitlán, dissipam-se os fumos, submerge o alívio das dores nas articulações e sobrevive a herança mexica comum que parece explicar a devoção a Guadalupe, mais Guadalupianos que católicos, a madre de todos os deuses tonatsi, a suspeita de que Guadalupe é a indigenizacao da religião católica.
Já noite dentro, o Júlio Cesar e a Paloma dão os nomes para a viagem na noite mexicana, direção lucha livre, uns acrobatas saltimbancos que simulam lutas familiares, e certamente que o fazem por sobrevivência e reconhecimento, porque a audiência é entusiasta e precisa dos heróis mascarados.
Na taqueria Orinoco, recuperamos as energias gastas na luta, no muito nobre bairro de Roma, um enclave de elites na grande selva urbana, cheia de bichos e de finais dramáticos e descobrimos que afinal sempre vive um México branco na cidade.
Quase imune à história conturbada do povo.
Quase!



quinta-feira, 20 de novembro de 2025

vertigo mexica

 

É pressuposto começarmos pelo princípio, um povoamento datado de dois séculos antes de cristo, não é que que estes simbolismos de calendário interessassem muito a estes povos mesoamericanos que só conheceram o novo Deus barbudo muito tempo depois (e tarde demais ao que parece) e que construíam pirâmides de adoração ao Sol e à Lua  e alamedas que lembravam os mortos.
Muito antes daqueles povos que tiveram um lugar especial na História, primeiro os Maias, depois os Aztecas.
Mas em Teotihuacan, as pirâmides afinal não são pirâmides, são estruturas escalonadas porque não têm bicos, nenhuma delas é dedicada nem ao sol nem a lua, nem a alameda dos mortos era o cemitério da antiguidade, e tudo o que aqui vemos hoje resulta de uma interpretação azteca (portanto também pré-hispânica) do que eles descobriram, uma cidade cerimonial abandonada por uma civilização que tinha povoado aquele local mil e quatrocentos anos antes dos aztecas e que terá abandonado o local por exaustão de recursos naturais, ao que consta, por falta de água, esgotada pelo mito da criação da humanidade, “as montanhas que emergiram a partir da água”.
Abandonado por volta de 600 anos antes do aparecimento dos aztecas, enquanto grupo identitário próprio, por causas que nós, contemporâneos, temos dificuldades em conceber, porque ainda acreditamos que a tecnologia e o saber tornam os recursos naturais ilimitados.
A partir do lugar onde os deuses foram criados (assim se traduz Teotihuacan) do alto das escadas da pirâmide da Lua contemplamos a alameda doa sacrifícios ( eles juram que eram voluntários porque o sangue dos humanos fertilizava a terra e acalmava os deuses, mas nem do alto da pirâmide que não é pirâmide eu acredito, perdoa-me Rosa, a nossa contadora de historias local) e  repetimos mentalmente as formas como esta civilização procurava resolver os mistérios da criação e justificar a necessidade das cerimonias e dos rituais.
Somos a quinta humanidade (aparentemente seremos sempre a quinta humanidade em todos os presentes) a última - depois de nós virá o diluvio e veio, séculos depois, encarnado num barbudo de capacete.
E Quincuce, o símbolo principal das culturas mesoamericana, representa os cinco pontos cardinais, incluindo o centro como ponto cardinal, porque eles achavam que a terra era plana, também os cinco elementos da natureza, incluindo a raça humana e as cinco humanidades, depois das quatro anteriores se terem extinguido por ordem de cada um dos Deus Sol.
Iras que só o Deus Sol conseguiria provocar. catástrofes naturais, como na terceira humanidade em que o vento empurrou a humanidade pelo mundo abaixo, como se o mundo fosse uma folha de papel a sobrevoar o vazio.
Pronto. Começámos, ainda que atabalhoados pelas diferenças de fuso horário, pelo princípio


Mas regressar aos confins da história do planalto, exige uns cinquenta quilómetros de regresso abrupto ao presente, uma intrusão  insolente de realidade, de ruídos de uma vida sofrida, favelas com os teleféricos como o novo instrumento de inclusão, que transporta o povo pelas encostas abaixo para participar na construção do dia mexicano, os muros brancos das bermas das autoestradas que são uma cacofonia de animais ferozes, de manifestos políticos, de publicidade a produtos de consumo ou de serviços de aconselhamento.
O autocarro regressa cheio à metrópole, e regressa também a intensidade dos cheiros, a azafama das pessoas, dos vendedores ambulantes com as suas trouxas, dos engraxadores de sapatos, das taquerias de rua, umas nos passeios, outras nos cruzamentos sobre o asfalto, quer os semáforos estejam verdes ou vermelhos, ou apenas transeuntes que se agitam nas bermas da estradas e das ruas, nas escadarias do metro, sempre sem tropeçar no comércio que alimenta milhões e dá de comer a muitas centenas de milhares.
Assombroso, impossível de parar de tão intenso, tão esmagador, que te empurra na frente deles e te transforma em poucas horas em mais um chilango entre milhões,  mais um entre iguais, porque é assim que eles sempre nos olharam, talvez por termos aprendido rápido a sair a correr das carruagens do metro sem ficar entalados nas suas portas que não esperam por ti, europeu habituado a um longo normativo de conformidade que te protege em todos os cenários de aperto.
Aqui, na vertigem do tempo e do espaço que escasseia, não há tempo.
Mas no mercado de San Juan, o tempo pausava, o mel sabia a café e o ceviche que vinha do mar, cheirava a maresia, apesar de tão longe do mar, apesar de tão longe do campo, tudo era genuíno nas mãos e nos olhos do Victor, antes o Victor de Acapulco, agora o Victor o Sereio, sim, o Victor como o masculino de Sereia.
Como o Miguel, quando nos encheu as mãos de gomas e de bolas de chocolate e a boca de provas de doces, sem saber se nos venderia algo, e nos pedia desculpa de não poder fazer mais desconto.
Ou como os cantores informais que tinham a voz, como instrumento único, e que pediam emprestado o som a uma coluna de potência indeterminada, mas não poupavam a voz e o coração que dela saia.
Na cidade todos, mesmo os cantores, parecem cantar mais alto e ao desafio, é uma alegria desenfreada para quem quer sobreviver. E quando voltamos à rua, para visitar a biblioteca Vasconcelos, percebemos que a cidade é esmagadora, até no silêncio e nas linhas arrojadas de sua arquitetura contemporânea, um silêncio sepulcral, um espaço publico onde os livros se encavalitam nas prateleiras metálicas que forram o espaço que as pessoas consultam sem a presença de bibliotecários, apenas com uma simples revista na porta de saída.
Mas alguns refugiam-se na biblioteca Vasconcelos apenas para descansar uns breves minutos da vertigem que é a urbe.
Sim, o povo canta alto para não chorar
Como os mariachis da praça Garibaldi.