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terça-feira, 7 de maio de 2024

Os poetas de Shiraz

 


Ter sido a penúltima capital do império é como ser o irmão mais novo de uma longa família de irmãos, todos se preocupam muito contigo, mas ninguém ouve a tua voz. 
Especialmente se o irmão mais velho é um notável Safávida e a sua capital, Esfahân. 
E, apesar dos imperadores generais da dinastia Zand, modestos nas origens e no seu destino final que os impediu de se nomearam reis mas apenas regentes, terem sido, como Khan, amados pelo povo - o que não é propriamente normal na história deles - nada do que eles construíram foi especialmente original nem revestido da grandiosidade dos seus antecessores. 
Apesar da superstição dos faustosos Safávidas persas incutida pela religião, por eles levada para dentro do Estado, os ter levado a entregar o seu cetro aos afegãos sem luta. 
Basicamente aos irmãos mais novos que os procuraram imitar.
Um fratricídio fraternal, afinal.
E, na madraça de Shiraz, tivemos o nosso primeiro encontro com os mullahs, a herança Xiita de Shah Abbas, da sua dinastia, e da incapacidade de um reino milenar em entregar ao povo uma lei terrena, e o que pensam os religiosos da vida das pessoas, enquanto levitam nos pátios vazios da madraça, vazia de alunos, e na soberba de quem acredita ter um mandato de poder divino.
E nos pátios do silêncio, a nossa curiosidade não é satisfeita porque a madraça é um local para quem aprendeu o Corão e para quem acredita que o décimo segundo descendente de Maomé um dia voltará para os guiar na fé. 
E assim partilhamos as nossas interrogações silenciosas com a nossa transparência e com as fotografias dos seus mártires, todos entretendo o tempo cofiando as nossas longas barbas nos bancos de jardim do pequeno palmeiral, outrora o pátio dos alunos da Escola religiosa. 
E assim imergimos na primeira das dimensões da dinastia Zand!
Deambulando no bazar que ferve de agitação e das cores da escola de pintura de Shiraz, pássaros e flores nos lenços de algodão, porque é o comércio que faz crescer a legitimidade dos grandes impérios.
Buscando a eternidade na mesquita, porque não existe Rei (apenas um regente e o filho mais novo do grande Safávida dos 999 caravançarais, de uma precisão Safávida) que não procure ser o representante de Deus na terra.
Refugiando-nos na fortaleza que assegura o poder terreno quando tudo o resto corre mal. 
E o museu Pars resume os duzentos anos de memórias da dinastia, numa sala octogonal rodeada de um dos jardins da cidade, e das memórias que a dinastia tinha da mitologia persa, da invasão árabe e de todas as mudanças de paradigma da História dos Persas.
Entre a fortaleza, a mesquita e o bazar e sob o olhar atento do velho livreiro com o seu farfalhudo bigode persa, que expõe a sua Literatura nas grades que cercam o jardim, e que procura, através da partilha do conhecimento, libertar o mundo do dogma e da simples tradição. 
Como para Hafez, o poeta de Shiraz, para quem não há fronteiras quando se proclama o amor em poesia escrita em Fársi. 
As famílias que rodeavam o seu túmulo do poeta, prestam assim o tributo, identificando Hafez com o futuro. 
Ou não, porque a poesia do poeta de Shiraz pode ter múltiplas interpretações, tantas que se podem transformar em simples rituais de partilha social ou um atraente e amado instrumento de propaganda.
Mesmo que as centenas de exemplares do seu Divã, estejam expostos sem pruridos e em todas as línguas do mundo, nas prateleiras abertas do local, para que não houvesse equívocos na tradução.
Mas naquele fim de tarde de Domingo, que não é, afinal, dia Santo no Islão, os sinais são contraditórios porque a alegria das famílias que envolvem o túmulo do poeta contrasta com uma multidão de mulheres de negro que se curvam, no salão memorial, perante o peso do livro sagrado e dos seus dogmáticos intérpretes. 
Mas quando, mais tarde, nos refletimos, no princípio da noite, nos tetos espelhados de Shah Cheragh, o mausoléu dos mártires Aḥmad ibn Mūsā e Muḥammad ibn Mūsā, filhos do sétimo Íman, na tradição dos doze descendentes de Maomé, o mais sagrado mausoléu dos xiitas, percebemos a vontade humana de estar sempre perto do céu, mas também percebemos a voz do poeta, que não vê nela qualquer contradição com a crença divina:
"Aceita esta vida como uma taça de sorriso nos lábios, mesmo que o coração esteja a sangrar" 
Afinal de contas, no imaginário do Islão, os pássaros estão sempre a rezar, especialmente quando voam, diriam os ventos do humanismo universal!



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