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domingo, 5 de maio de 2024

As Baladas de Shiraz

 


“Welcome, my friends” há orgulho no ar, não é soberba imperial, apenas vontade de falar uma língua comum, sejam os jovens que nos abordam no entroncamento das avenidas, ou nos restaurantes, sejam fotógrafos ou modelos, tudo serve para nos trazer para a realidade deles e para que eles nos mostrem o quanto eles gostam de nos ver por cá. 
Ou sejam as comissárias da religião do estado, vestidas de preto, mas sem receio da força das imagens, sejam fotografas ou modelos, partilhando os cartazes e a militância. 
Na manifestação a favor da Palestina, as famílias espraiam-se pela avenida, a câmara rotativa instalada num palco elevado era a grande angular de propaganda para exportação de uma militância feroz, uma realidade construída que, ao nível do asfalto, são apenas famílias que tiram fotografias uns aos outros, crianças com balões que os empurram para as camaras, músicas, folclore e uma marcha que, para quase todos, é apenas um ritual de dia santo. 
(fomos certamente alvo de uma manobra propagandista da menina mulher de preto, de grandes olhos castanhos que não nos inquiriam, apenas enquadravam os ocidentais ao lado da irmandade, mas francamente, não nos importamos) 
Em Shiraz vive-se a última sexta-feira de um Ramadão suave onde se almoça panados de frango, desde que a porta esteja fechada e, afinal de contas, todos nós estamos em viagem e, portanto, podemos alimentar-nos antes do sol se por.
Ramadão suave porque provamos os doces na loja elegante da mulher de preto e de unhas vermelhas impecavelmente retocadas, primeiro hesitante porque a laranja, as tâmaras, as amêndoas e outras doçarias também são comida, mas afinal não deixamos de ser apenas viajantes com fome, e porque, acima de tudo o resto, vamos certamente comprar. 
Ramadão suave porque à janela do restaurante que irá abrir as portas depois da cerimónia, os espelhos refletem a rua e inundam a sala e os longos sofás (que também são mesa) de um sol de primavera, no planalto sagrado das montanhas do Sul. 
E dos espelhos com molduras de vidros coloridos emana a música persa, uma letra em língua Fársi que desconhecemos, mas não é preciso tradutor para nos fazer viajar no tempo e na languidez sentimental que promete aos jovens, aventura e romance, os jovens que entram no restaurante fechado, cabelo rapado nos lados, amigas que sorriem e o maior dos rapazes que insiste em ser fotografado no meio de nós, dos espelhos de molduras vidradas, e da música que suspira através de um ecrã de karaoke. 
Merci e uma palmada no peito em sinal de compreensão, muito mais que gratidão. 
E anoitece conforme todas as normas, não fossem os abraços consentidos dos jovens que se amam e que envolvem a fachada principal da mesquita Vakil, numa auréola de irreverência e desplante.
E nos terraços da cidade velha, construída de adobe e de convicções fortes, ouvem-se os primeiros sons da genuína irmandade persa, são sons gritados do Sul, será assim nas próximas mil noites em que os sons do deserto ou das montanhas vão ecoar nos pátios árabes, nos jardins ou nos palmeirais, ou simplesmente irão cair do céu estrelado, uma sucessão de gritos que nascem do coração e do nosso imaginário e que, afinal, não correspondem a nenhuma noção de espaço e de tempo conhecidos.
É o Ramadão suave que se esgota numa Sexta-Feira Santa em Shiraz



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