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segunda-feira, 6 de maio de 2024

Os manequins de Shiraz

 


No fim do labirinto, descobrimos que até o labirinto tem um lugar a que se pode chamar de fim. 
No entroncamento que liga o deserto labiríntico de paredes de tijolo, ao lotado mercado do peixe, da fruta e das especiarias, percebemos que as ruas desertas e sem placas de identificação terminavam num engarrafamento de três veículos utilitários que entupiam a circulação, buzinas e aceleração, mas ninguém se zangou.
Um jovem musculado, tão moreno quanto penteado, t shirt preta e ar gingão, ordenou que o trânsito esperasse por ele e colocou-se estrategicamente no centro da praça imaginária, qual sinaleiro pau de giz e esperou, com pose de herói que nunca será mártir, e esperou pelo disparo, um dois e três e depois reergueu-se triunfante e o engarrafamento fluiu ao ritmo do seu entusiasmo, para nós incompreensível. 
Mais familiar nos pareceu o antigo emigrante em Espanha, aparentemente o amigo do dono da loja de especiarias que lhe obedecia como se fosse o seu empregado, no mercado do peixe e da fruta, e que nos ofereceu a loja pretensamente do amigo para mostrarmos as prateleiras repletas de cor e de cheiro, mas era ele que escolhia as prioridades e os protagonistas. 
Enquanto a vida circula no mercado do peixe fresco do golfo e das frutas e legumes que povoam o planalto, imergimos numa realidade tão paralela que até os números persas são símbolos, um cinco é um coração invertido, lembro-me eu enquanto o iraniano, que é amigo do dono da loja que lhe obedece como a um patrão, se despede num espanhol repleto de calão perfeito. 
E no mundo da realidade paralela são os figurantes que definem a agenda do fotógrafo, que o incitam a não falhar o enquadramento, são eles que sorriem para o fotógrafo, são eles que fazem as perguntas e que dão as respostas e perante a pergunta afinal o que querem eles, a resposta é tudo, fotografarem, serem fotografados e serem vistos connosco, tudo serve. 
O Irão não se deita cedo e, portanto, a vida nos mercados prolonga-se pelo sol na vertical até à noite fresca do planalto, o néon não se apaga nunca nas ruas, mas de noite, a simbologia Parsi é mais brilhante, porque os iranianos não se fecham à noite em casa. 
E há mesmo sonâmbulos que correm pela cidade às seis da manhã entre Hafez, o poeta, e uma cidade que os ignora porque acorda tarde, porque não gosta de se deitar cedo.
À noite, os manequins de Shiraz ganham uma vida própria na rua do comércio de roupa, e incitam ao contraditório, entre os sonhos que despertam e a realidade que os desfoca. 
Num breve intervalo à cidade que nos recebeu sem falsos pudores, caminhamos na lama do mar interior de sal onde não há flamingos, mas há miragens que não se desfazem com o por do sol, nem com um chá quente que nos aquece as extremidades, quando o vento traz a noite. 
E despedimo-nos da Maya, uma jovem pastor alemão que se recusa a compor a paisagem de silêncio e meditação, saltando-nos para as mãos de língua afiada e de amor infinito, nas margens do lago dos pés sujos de lama e alma lavada pelo vento fresco que nos coloca, em espírito, nas montanhas que nos cercam. 
Chegámos para jantar a tempo do pai de família que faz anos hoje e o bolo está cheio de velas e fotografias da sua realidade e do seu passado, apaga as velas com solenidade, beija o filho e abraça o amigo, e mantém a seriedade mesmo quando os músicos rompem a tradição e os preconceitos e cantam os parabéns no inglês proibido, apenas uma distração momentânea dos murmúrios farsi. 
A saída da cave que mais parece um clube de jazz, em que se canta amor em parsi, desenvencilhamo-nos das últimas espinhas do peixe frito em especiarias e pimenta, que revelam uma dominância da terra sobre o mar  despedimo-nos dos sorrisos melodiosos que impregnavam o local de sedução sem mal-entendidos, porque em Shiraz os iranianos não se fecham em casa à noite, e saltamos para a rua, recuperamos o contacto com o mundo e piscamos os olhos aos últimos manequins de Shiraz que se recusam a regressar a casa.



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