Pesquisar neste blogue

sábado, 2 de março de 2024

WAY TO INDOCHINA #19 - Last train to (from?) Indochina

 

Na península de Luang Prabang, os oitenta e três mosteiros, um património mundial baseado na harmonia entre a arquitetura colonial e o espiritualismo budista temperam o frenesim asiático e aproximam a cidade, que foi capital real do império do Laos, na época dourada após a queda dos kmers, entre o século catorze e dezasseis, da visão neorromântica do Oriente. 
Há nesta simbiose arquitetónica que tanto fascinou os técnicos da UNESCO um certo sentido histórico porque os reinos de Luang Prabang foram os mais iluminados das centenas de anos de divisão natural do reino em protetorados fantoches das potências vizinhas, mas também porque foi a capital do império nos séculos em que o Laos foi um verdadeiro Reino, curiosamente, coincidente com o ocaso dos kmers em Anghor, mais a Sul., mas não foi curiosidade apenas, foi uma descendência real que acreditava na sobrevivência da indochina, talvez com o epicentro mais a norte, que apenas ainda não sabia que o era, a par dos grandes impérios emergentes.
E, parece hoje um facto histórico incontestável que foi o colonialismo francês do século dezanove, que voltou a colar as peças do Laos e que procurou construir um novo reino a partir de Luang Prabang, com um rei a sério, e tudo.
Não que fosse esse o objetivo dos franceses, mas a sua estratégia de utilizar o Laos como um território tampão entre as potências vizinhas e concorrentes e a verdadeira Indochina, aquela que tinha margens de mar, foi o estímulo necessário para que hoje Luang Prabang – e alguns outros locais da nova República Popular do Laos – nos revele um sedutor mosaico de diversidade arquitetónica e bom gosto cultural.
Preservada em nome da memória, seja ela qual for, sem juízos nem preconceitos
Apesar de, ainda assim, em Luang Prabang serem escassos os momentos de visão de um santuário paradisíaco de meditação, definitivamente um mito.
Sabemos, claro, que esta é uma visão fútil e desajustada da realidade (vivida pelos seus habitantes)  toldada por uma conversão apressada (e apresada numa espécie de moda) a Buda em posição de proteção, de quem não tem receio e que nos empurra para uma vida errante, um vagabundo que respira da meditação e distribui desprendimento nas experiências partilhadas e na acumulação de saber. 
Mas nos fins de tarde de Luang Prabang, sobre as águas do Mekong banhadas pela bola de sol que se despenha entre as montanhas, respira-se a indolência da Indochina em estado puro, onde só o mundo importa. 
Mas para logo a realidade destruir a nossa perspetiva orientalista do Oriente, com o cheiro a diesel do motor do barco que arrancava com um toque de fusíveis e se desfazia na travessia do riacho Kong, nas costas do Mekong, apenas uma linha de água e um monte de lama que nos separava do jantar.
A manhã tinha começado cedo em Luang Prabang entre pedidos de respeito feitos em inglês, para mantermos distância de segurança em relação aos monges que, antes de amanhecer, percorrem as ruas pedindo aos locais arroz e outras oferendas, para se alimentarem durante o dia. 
Os antigos colonialistas, cheios de culpas, princípios e respeito pelas sensibilidades e fé de cada um, reservaram os três metros de distância, não lhes tocaram, alguns rezaram e muitos deram oferendas 
Os novos donos da Ásia, que não param de se querer perpetuar em selfies e poses de imperador sempre com o incentivo adequado do fotógrafo, atuavam como os novos colonizadores, tocavam nos monges, envolviam as lentes da câmara nas vestes dos monges e garantiam que nenhum close-up era mais intenso que o deles. 
Esperemos que a História seja tão recriminadora com estes novos imperadores da Ásia e que os povos, um dia, se possam declarar oprimidos. 
Nos odores da manhã do Laos, cheirou-nos a incenso no Wat Xang Thong, a peixe desventrado mas de longos bigodes, do rio Mekong, a morcegos fritos entre outros animais, legumes inacessíveis e caril, e malagueta e umas quantas galinhas viradas de cabeça para o ar, bem vivas que gritavam quando lhes atacam as patas, para melhor arrumação. 
Nas imagens da tarde precoce de Luang Prabang deixamo-nos levar, uma vez mais, pela fragilidade da vida das pessoas, dos comerciantes que foram buscar os filhos à escola e montam as bancas do mercado noturno, uma tarefa perene que se repete todos os dias e morre, como uma borboleta, umas horas mais tarde, sempre com as crianças por perto, nas suas fardas da escola e que adormecem, noite chegada, entre os tecidos, o artesanato, as mãos do povo do Laos que se oferecem ao escrutínio dos estrangeiros. 
Espera-se muito das crianças da Indochina, vão a escola, viajam na dianteira das motas sem capacete, ajudam os pais nos mercados da noite, enfrentam os feiticeiros da aldeia que insistem que a terra é plana porque não vemos a curvatura da terra, e os deuses do dogma que lhes vão continuar a explicar que, numa utopia já desaparecida, os homens podem ser todos iguais e felizes desde que sejamos obedientes e nada irreverentes. 
Mas num país em que as crianças conduzem as suas motorizadas para irem para a escola e a sua independência precoce é a forma dos pais garantirem a sua sobrevivência, os velhos dinossauros estão em elevado risco de extinção. 
Num último adeus ao Laos a criança acenou da mota da mãe, mãozinhas firmes no guiador, mãos carinhosas a arranhar a perna da mãe, uma mão entusiasta a dizer-nos adeus, a acenar-nos para a traseira do tuk tuk que nos deixou no aeroporto e nós só lhe víamos os olhinhos que piscavam de expressividade, porque uma máscara de pano lhe cobria cuidadosamente a boca, porque a energia verde ainda não chegou ao Laos e uma mãe que nos sorria com os olhos, de orgulho, sabe que só ela o pode proteger. 
Corta! 
Foi a última imagem do Laos, mais poderosa que todos os monges cor de laranja que vivem e estudam em Luang Prabang.
Tão pungente quanto as quatro faces de Buda. 
Se não fossem as profundas saudades das minhas raízes, esta seria o meu destino, um vagabundo que respira da meditação e distribui desprendimento nas experiências partilhadas e na acumulação de saber.
Mas, no país dos elefantes, o mundo relembra-nos que ainda és demasiado novo para morrer distante, mas já és demasiado velho para ser errante 
Heaven in Earth for you, Indochina!





Sem comentários:

Enviar um comentário