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sábado, 9 de março de 2024

Onde mora a alma velha?

 


Leon Machowski foi um escultor do antigo regime, um artista militar que ultrapassou os horrores da guerra e viveu numa obscuridade tranquila, trabalhando na reconstrução da cidade ao serviço da estética construtivista.
Morreu de enfarte em serviço quando esculpia um baixo-relevo no tumulo de um arcebispo polaco na igreja São João Batista.
E esculpiu a estátua dos pescadores no centro da lagoa no Jardim Krasiński, um reservatório artificial construído no século dezanove que nos remete para as paisagens polacas e para os símbolos nacionais, o lago que simbolizava o Mar Báltico, o riacho que desagua nele, o Vístula, e o campo rochoso com uma cascata, uma reminiscência das montanhas. 
Uma obra de engenharia que atravessou o século vinte incólume, o triunfo da água no sentido figurado sobre as bombas, uma resiliência que inspirou a reconstrução, uma referência estética que moldou os espaços da cidade.
Já a memória do escultor que morreu com a Perestroika, parece não ter sobrevivido aos novos ventos vindo do Ocidente, Em 2013 por decisão das autoridades, o estúdio do artista em Varsóvia foi demolido. As esculturas que o rodeiam e os mosaicos que decoravam o pavilhão também foram destruídos.
Parece que o novo regime também é pouco condescendente com alguma alma velha e, pelos vistos, não perdoa aos colaboracionistas. Que o diga, o majestoso Palácio da Cultura a quem querem condenar à morte, apenas por ela ter sete irmãs russas.
Naquela manhã em que água sobrevivia a temperaturas que a podiam ter gelado, o idoso que não se dava a conhecer, refugiava-se no banco de jardim com vista para o Báltico e desenrolava a história de uma vida que parecia prestes a lançar-se ao mar, numa tranquilidade que a natureza estabelecia como inevitável. Como se a alma velha não se enquadrasse nos novos tempos.
A alma velha vive em contraciclo, entre os dinossauros do exército de salvação que, no museu nacional povoam os bengaleiros transformados pelo cheiro a mofo em instrumentos de pleno emprego dos reformados da democracia popular que nos lembram a irmandade moscovita que protegia o realismo do seculo dezanove com um zelo de elevada densidade de vigilantes por metro quadrado de tela. 
Mas a alma velha também se manifesta amiúde nos recantos de silêncio entre a intelectualidade exilada, que se refugiou nos redutos da cultura ocidental e perdeu as referências do sacrifício, apenas pinturas de tons carregados e rostos enrugados que desfilam nas paredes do museu nacional, pintados a partir de recordações longínquas da estepe gelada que se tornam cada vez mais difusas, quanto mais. 
E por isso a Nação tem dificuldade em fazer o culto dos heróis individuais porque uns, caíram em desgraça pelo seu comprometimento político e outros, não despertam a pátria, por falta de comprometimento e de capacidade de sofrer, desenraizados por exílios dourados e - suprema ironia – fugindo da falta de identidade nacional e de séculos de ocupação estrangeira.
Nesta manhã de Páscoa cinzenta, os pescadores de pedra do Báltico, recriado pelos últimos monarcas legítimos da Polónia, olhavam com condescendência para as margens silenciosas como se, para o colaboracionista Machowski, o velho debruçado sobre as suas próprias memórias escritas representasse, no seu corpo frágil, Adam Mickiewicz, o poeta, Chopin, o pianista, Marie Curie, a cientista, todos eles numa inteligência que deleitou a humanidade, mas que não serviu a nação.
É como se o escultor Leon gritasse, do centro do lago que se podia chamar Báltico, que os únicos heróis da pátria eram os coletivos, os oficiais de Katyn, os intelectuais democratas de Varsóvia e os operários de Gdansk e de todos os que souberam sobreviver, mesmo alguns, sem lutar.
A única certeza do velho cheio de memórias é que a alma velha ainda povoa os recantos da nação, mas já não são eles que vão fazer o futuro.



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