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sábado, 13 de outubro de 2018

Os filhos de uma mãe maior




O abraço da mãe Rússia foi intenso, não por vontade própria dos seus milhões de filhos, mas porque ela é de uma estranheza que se torna familiar à medida que vamos contabilizando as semelhanças e as diferenças e o quadro se mantém balanceado.
Sempre.
Teimosamente.
Mais do que isso, é uma obstinação russa provocar-te a desorientação, sempre que te parece próxima e que o cirílico parece um código que se decifra símbolo a símbolo.
No momento seguinte, um qualquer equívoco linguístico inconveniente lança-nos um mau olhado e as expressões voltam a fechar-se e permanecemos sozinhos, rodeados pelo mundo deles.
Esta é a primeira impressão e, passados sete dias, é também a última.
Uma defesa contra as fragilidades da sua geografia de milhões de quilómetros quadrados, mares fechados por estreitos de centenas de metros de largura ou por milhares de quilómetros de gelos quase eternos.
Ou uma estepe plana que lhes abre as fronteiras terrestres pela Europa dentro à espera de que o Inverno os proteja.
Numa linguagem geoestratégica, um gigante de pés de barro.
Chegámos na quase madrugada do último dia de Verão e a temperatura estava amena e as primeiras imagens são quase estereótipos.
O Sol nasce muito cedo neste prelúdio de Inverno que é o curto Verão russo mas os subúrbios da grande metrópole já fervilham de gente que caminha de cabeça baixa, passos curtos e apressados, casacos longos e pesados por entre uma bruma matinal que filtra o ultimo sol de verão, uma ausência quase absoluta de cor, uma predominância dos castanhos e dos cinzentos e de uma geometria herdada dos longos anos de uma arquitetura construtivista.
E uma estranheza imensa de que os povos do frio se vestissem como inverno, quando ainda estávamos no último dia de verão – na sua forma substancial, claro que basicamente é a mesma da forma de calendário.
Julgamos ter descoberto, algum tempo depois, que Moscovo é também uma cidade de novos estrangeiros, os despojados do antigo império, os homens e as mulheres do Sul que farejam o frio antes dele chegar.
(Mas essa é a história do fim do Homem Soviético, impossível de adivinhar para quem não domina o cirílico)
Mas o que mais nos surpreende é o expoente do próprio estereotipo, a dimensão apoteótica dos lugares, dos edifícios e dos espaços entre eles, a extensão e a largura das avenidas, tudo fazendo parte da imagem que havíamos preconcebido, mas numa medida que não cabe nas nossas proporções.
Mas, verdadeiramente a primeira imagem é um equívoco ocidental, o primeiro entre muitos.
Esperava-nos o Nicolai que nos tinha avisado na véspera que estaria à nossa espera, numa mensagem em que o dono da conta era uma jovem de cabelos louros chamada Nicolai.
Afinal o Nicolai era um homem maduro, de feições fechadas e um olhar geométrico, compleição física de um atleta de alteres que nos cumprimentou com impercetível acenar de cabeça e ficou desconcertado quando lhe estendemos a mão para o cumprimentar.
Estávamos avisados que o contacto físico com estranhos não é o forte dos russos.
Mas aproveitámos a imensidão da estepe urbana e confiámos que o Inverno não chegaria.
E, relutante, o homem estendeu-nos a mão, para rapidamente se refugiar de novo no seu espaço próprio.
E, pela primeira vez de muitas, esbarrámos naquele tipo de olhar que, ainda hoje, na ressaca russa, somos incapazes de discernir entre desconforto, brusquidão, frieza, antipatia, timidez, incompreensão ou receio.
Por isso, ou talvez não, o Nicolai permaneceu silencioso e concentrado no trânsito em todo o percurso até à cidade.
E, com as primeiras imagens, logo compreendemos que o Verão ia mesmo acabar hoje, dia 22 de setembro, último dia formal da estação estival.
A partir de 23, a temperatura não parou de tombar e vivemos uma semana de revolta dos elementos.
Na Rússia respeitam-se os elementos de uma forma muito substantiva, e o fim do verão não tem interpretações vagas, como se o direito à individualidade terminasse no momento que esta pudesse interferir com a natureza dos elementos.
E também com outras questões de interesse nacional, entendemos nós quando, pouco depois, fomos submergidos no mundo da vigilância eletrónica, dos detetores de metais, da revista minuciosa e dos seguranças com cara e corpo de armário, os elementos da natureza do estado destinados a apagar as memórias recentes, em carne viva.
Como diria o N. que, pretensiosamente julga ter descoberto um novo conceito, uma censura consentida

Para já, grandeza, distanciamento, orgulho, sobrevivência e controlo, no grande jogo proibido dos adjetivos na escrita.
















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