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quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Sunset Boulevard



O Adamastor, canto V, não é um monstro indomável.
Na pedra de Santa Catarina, o Mirador de Lisboa, há uma espécie de conto de fadas que abraça a estátua de pedra escura e formas indistintas, com uma absoluta ausência de temor.
Talvez porque neste Dezembro de amenas paisagens, o rio não é o mar, a autoridade fuma numa farda cinzenta e os outros fumam cheiros adocicados, arrastam os cabelos enrolados pelo chão de pedra polida, a música tropical exala sons de um exótico ardente e de uma paixão que aspira os inofensivos pecados.
Por isso o Adamastor não tuge, tão desconsolado pela sua incapacidade de amedrontar.
E a fauna precede a flora, o poder da flor e outras fábulas que não se contam às crianças.
Mas enquanto a luz se torna oblíqua e céu alaranjado, as figuras renascem em sombras, o casal passeia uma cadela de coroa de flores ao pescoço e longas tranças, armadas como um balão de São João, o curvado ciclista desagua do nada junto à árvore que se vangloria de ser mais imponente e de maior utilidade que o pobre Adamastor.
Ninguém se encosta, não é medo é apenas desprezo.
Devagar, devagarinho, aproxima-se pelo fundo da praça, uma jovem de caminhar ágil, uma gazela que faz questão de destoar da fauna arrastada e encardida tanto quanto as sombras nos permitem cheirar, sim, uma elegante jovem de roupas limpas e cores com personalidade, sim é ágil mas parece pairar em camara lenta entre uma massa de gente de roupas escuras e olhares sonhadores, ela aproxima-se vinda do fundo da praça, Catarina é o nome da praça, o nome dela não sabemos porque ela não fala, não diz, apenas levanta ligeiramente a cabeça à nossa passagem, uma forma de evidenciar a sua diferença, contorna os troncos das árvores centenárias, desce as escadas de pedra em bicos de pés, bailarina com certeza afirmam os olhos da gente que forra a encosta de pequenos faróis que piscam com a sua passagem, abre alas com um foco de luz que brilha nas suas pernas de brilhantes e ganga envelhecida, intromete-se entre a paisagem, o público e os músicos, contorna a multidão como se tratasse de um filme que tivesse parado e todos os figurantes se petrificassem de modo voluntário e, finalmente, chegou-se aos pés da grande estátua.
Acariciou as disformidades do grande Adamastor, estendeu-se diante a grande sombra que vigia o rio, esboçou um passo de dança – era definitivamente uma bailarina – seduziu o monstro com uma larga vénia que largou um eco na praça, construiu um pequeno altar de paus de gelado e lançou-lhe o fogo, transformando o monstro num objeto de culto, que esboçava um sorriso, a partir da luz da fogueira.
Aninhou-se no seu colo e fumou um longo archote que largava fumo, chispas e pedaços de erva.
A restante malta logo se desinteressou da gazela vudu, esperavam rituais satânicos e afinal de contas a ágil princesa das trevas apenas procurava conforto na experiência do velho.

Todas as tardes, antes do Sol dormir.


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