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segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Na roda do Castelo



Na agitada esquina do Largo da Graça, o quiosque do homem mais importante do bairro está apinhado de gente menos jovem.
Na parede do prédio dos vizinhos, o dono da rua espalhou as capas de jornal e reuniu as forças vivas do bairro que certamente discutiam o tudo e o nada, para além naturalmente de futebol.
E nem a fúria eleitoralista da autarquia que arredonda passeios, transforma calçadas e entope parques de estacionamento, reduz o calor daquele momento, torna-o apenas um pouco mais denso e dramático, envolto naquela rede de obras em curso, com término previsto lá para o Outono.
Serpenteando o castelo a olhar o rio, saem vozes de dentro das janelas abertas que evaporam um cheiro a couves cozidas e a mofo da idade, a mulher de preto que assoma à porta da ruela e, perante a incapacidade de estender o pau da roupa, roga pragas a quem quiser ouvir, escandalizando os forasteiros com um “ nem com esta idade consigo enfiar o pau”, e a velha que grita do alto do segundo andar para a rua, reclamando não se entende de todo o quê, num idioma que o seu vizinho asiático parece entender com a única mão que tem liberta, enquanto rola calçada abaixo puxado por uma bilha de gás propano.
Na mouraria, onde já não há locais nem estrangeiros, tão intensa é a multiculturalidade dos seus habitantes.



Sentada nas escadas da igreja que espreita o rio, uma mulher de meia-idade, vestida com um longo xaile preto e maquilhada com cores pouco discretas desfere ataques certeiros à honra de uma terceira entidade, alguém que a sua ouvinte bem conhece, mas que não está lá para se defender.
Nem ela nem a ouvinte porque naquele Mirador há apenas uma mulher de peito largo e voz de fadista que repete a sentença, tantas vezes quanto o sinal de telemóvel falha e os cacilheiros se aproximam do cais do tabaco
A voz remete-nos para as casas de fado que povoam o quarteirão, mas a saudade não lhe turva as intenções.




Nem o silêncio recolhido do terreiro da feira da ladra em manhã de descanso.
Nem as sombras que se enrolam nos lençóis pendurados, cada vez mais furtivas, cada vez mais penosas, dos últimos bastiões da ordem antiga, das portas escancaradas dos alguidares que se despejam nas esquinas ingremes (porque as esquinas aumentam a probabilidade de dispersão dos incómodos) e já não é vulgar que as sombras te olhem na cara e retribuam um sorriso, sobretudo por cansaço.  
Nem o Pai Natal pendurado na janela aberta e sonora das vozes do interior, que tanto se esforça mas que jamais transporá o varandim rendilhado que reflete o azul do céu e do rio.
Nem o fim da linha, onde para o 28, e para onde se parece ter mudado o mundo inteiro, e os pregões ganham uma música de tons exóticos.
Os tuk-tuk continuam às voltas, mas duvido que alguém lhes explique estas cambiantes.
Um pouco mais acima, um nobre cavaleiro, ao perceber um entreabrir de uma porta no Castelo dos Mouros, atacou-a sozinho e atravessou o seu corpo no seu vão, sacrificando a sua própria vida em prol da conquista das forças cristãs.
Mas o guia do tuk-tuk ecológico que miraculosamente não atropelara um molho de espanhóis, pelo silêncio, apressou-se a descansar os forasteiros em suspense:
- Não, não foi ontem. Foi em 1147!

E eles soltaram uma gargalhada de alívio.


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