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domingo, 8 de setembro de 2019

SILK ROAD #4 – Os heróis mais do que improváveis



O revisor foi afirmativo, perentório.
Afinal de contas o beliche de cima não é o do meio, e a ninguém é permitido provocar o destino, a aleatoriedade da procura e os registos da sua magnífica pasta onde os nossos bilhetes ficam reféns, por troca de um cartão de liberdade condicional.

E o funcionário certifica-se que cada um dorme no local certo e que ninguém muda de cama mesmo que seja inevitável que os melhores lugares não vão lotar, afinal não é a época alta para os chineses.
É a sua magnífica pasta que lhe orienta o quotidiano e nos tolhe os movimentos
Tudo meticulosamente registado.
O expresso da noite e do dia inteiro não é apenas um meio de transporte em que todos devem, por razões de ordem pública e de obsessão pelo detalhe, ser cuidadosamente arrumados por camadas, mas o grande veículo para que, na órbita da previsibilidade e da resiliência, se realizem os grandes desígnios da nação.
E o grande desígnio da nação é, ao que é possível pressentir, do interior do tubo de ensaio de vidro sem legendas e com proteção acústica dentro do qual viajam todos os estrangeiros, transportar o desenvolvimento económico do litoral sobrelotado para o interior profundo e para as novas fronteiras, uma fórmula de harmonizar o acesso das populações ao progresso, apaziguar sentimentos de exclusão e deslocar chineses para os caminhos da fronteira oeste.
Afinal de contas a mesma ambição que persegue o imaginário chinês dos últimos dois mil e quinhentos anos.
Pelo menos.
Às 3,54h da manhã ninguém dormia nesta horda de soldados que percorriam os corredores sempre que se aproximavam novas chegadas e, afinal, a pasta também servia para acordar os passageiros, que não têm um horário definido para dormir, porque a nação é grande, o tempo é curto, a obra é grande e não existem fusos horários suficientes para garantir um sono noturno a todos os chineses.
Sem uma palavra, sem um sorriso, sem um olhar
Os guardiões do corredor de Hensi apenas pretendiam assegurar que a viagem entre os oásis que deram proveito ao extremo oriental da rota da seda decorreria sem sobressaltos
Oásis, fortalezas e cidades, diferentes perspetivas, ambições e, especialmente, épocas, mas exatamente nos mesmos lugares, porque este caminho foi a única escolha com que a natureza presenteou a ambição dos humanos na história, cercado por montanhas, rios e desertos, à escala de um continente.
Tinha amanhecido quente e seco nos confortes da porta ocidental de Xian, onde os locais ofereciam tostas aos viajantes, para aqueles que partiam na direção do sol poente e que, em breve, se tornariam passado.
Na praça Ximen, ou simplesmente na porta ocidental, já não existem caravanas de mercadores que partiam em grupo com os seus cavalos de Fergan, mulas e de camelos bactrianos de duas bossas em direção ao corredor de Hensi.
O calor do interior profundo refletia as nossas sombras quase na vertical enquanto atravessávamos a praça preventivamente liberta de multidões, forrada de pedra branca e rasgada pela modernidade.
Na praça Ximen já não existem caravanas, mas a porta ocidental é ainda um ponto de partida para o ocidente, de onde partem os comboios  que interligam as cidades fortaleza, os oásis e as cidades do Noroeste.
Mas na porta ocidental de Xian, cuidadosamente recortada na muralha que circunda a cidade histórica habita a contenção, os homens das braçadeiras vermelhas que coordenam o tráfego, os primeiros olhares que perscrutam as nossas sombras que ocupam de forma generosa os espaços vazios, sem que nos seja permitida qualquer reciprocidade e nunca entenderemos se nos olham com curiosidade, desprezo ou indiferença.
Paira no ar uma desconfiança oficial pelos bazares sem controlo, pela euforia das partidas, pelos heróis que desprezam os perigos, as convenções e os interesses de estado e que acreditam que o comércio é o único sobrevivente às utopias dos grandes impérios que, normalmente a história se encarrega de tornar efémeros.
Dentro da gare, respira-se um esforço de modernidade asséptica, sem classes nem ajuntamentos, sem ruídos de fundo e de expressões contidas, mas a caminho do ocidente ainda se distinguem os conectados  em rede e os que olham o vazio enquanto devoram o concentrado de noodles em água a ferver e seguram os seus pertences com as cordas que os agarram às inevitabilidades resultantes do progresso.
Dentro da gare, apenas os locais sagrados permaneciam vazios e suspensos no tempo : a sala de espera dos militares, um monumento ao passado e o salão restaurante que parecia concebido para o futuro que vai chegar, onde somos surpreendidos pela modernidade dos olhares e dos sorrisos, uma juventude que se esforça em agradar e serve cafés expresso a três euros com o mesmo detalhe com que artesãos desenham os papiros no bairro de Shuyuanmen.
Enquanto a nova China desfilava sob os nossos olhos a um ritmo de comboio expresso e se confirmavam todas as promessas de uma natureza de elementos que não se conformam e das realizações humanas que não param de desafiar a natureza, enquanto comemorávamos com circunstância e com uma pontinha de soberba a travessia do rio amarelo que, naquele local e com aquela chuva, até nem parecia grande coisa, mas ninguém reconheceu a desilusão, não nos saía da cabeça uma voz que nos repetia sem cessar que os camelos são animais domésticos invulgares, carregam enormes cargas no seu dorso, correm rapidamente sobre as areias movediças do deserto, demonstram coragem nos lugares perigosos e tem um secreto e subtil  conhecimento das molas, como amortecedores dos caminhos difíceis.
Entre os cavalos de fergan, mercadores sem nome, distintos empreendedores, dinastias guerreiras e os invasores das estepes ocidentais, estes eram os verdadeiros heróis da rota oeste
Os camelos de duas bossas bactrianos

Sem chapas na lapela, porque o que interessa é o resultado do trabalho comum.



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