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domingo, 22 de setembro de 2019

SILK ROAD #5 – Areias movediças no ocidente longínquo



Desde a dinastia Han que a História da China nos coloca, neste local, no fim da grande muralha,  para lá das terras de fronteira.
E, nas portas das fortalezas, reinaria o espírito do exílio e jaziam as pedras lançadas pelos expulsos, na esperança de que estas alcançassem a muralha e este bom presságio lhes permitisse  voltar a ver a terra da pátria mãe.
E, à chegada a Dunhuang, encontrámos os primeiros sinais de que há heróis com vontade própria, assaltados pelo espírito de iniciativa, que desprezam os perigos, as convenções e os interesses de estado 
E apesar de não termos qualquer evidência de termos encontrarmos a porta de Jade, não obstante alguns jurarem que a viram para lá das miragens do deserto, rapidamente nos convencemos que para lá das portas do deserto, vivem os aventureiros e os renegados. 
E a malta procurava tão intensamente os vestígios da grande muralha como o momento decisivo , embalados pelo romantismo dos criadores da história, que nunca cheiraram a poeira do presente do passado que narram, nem se enterraram na lama das guerras fratricidas, que nem nos apercebemos que tínhamos entrado na nova porta de jade por comboio, logo pela linha principal, uma porta de vidro que realçava as manhãs e relativizava as cores do deserto 
Ao fim do quarto dia, ainda nos prendíamos à ideia de que a História, por aqui, se faz de pedras e de caruncho, esquecendo-nos que o que importa é o conceito e a utilidade, face aos desígnios do presente e â necessidade prática de fazer viver mais de mil milhões de seres.
E quando empurrámos a porta da rua, não entendemos que essa era a porta do deserto porque lá fora não havia renegados a tentar adivinhar a sorte pela trajetória das pedras rolantes atiradas à muralha mas havia lagos artificiais dos quais, um dia, jorrariam água, e pululavam os aventureiros entre as fontes imaginárias, as árvores plantadas em fila que, um dia, se haveriam tornar frondosas, aventureiros do ocidente longínquo que desafiavam o mercado e as regras estabelecidas porque, ao planearem no longo prazo, os guardiões do templo criaram novas distâncias entre os lugares e incubaram uma nova geração de empreendedores sem limites nem lei.
Um dia os espaços serão preenchidos e, de entre os sem lei de hoje, serão rebatizados alguns para construtores da nova era enquanto outros entrarão em desgraça e, esses sim, desterrados para lá das novas fronteiras, e não haverá pedras rolantes que os salvem.
Essa será a expetativa, mas junto às portas do deserto a nossa primeira impressão é que tínhamos chegado a uma terra de areias movediças, ou de oportunidades, onde a nova ordem se constrói, por vezes através de atalhos que são tolerados como desígnios inesperados de um futuro que já foi escrito.
E subitamente, P escolheu um entre todos porque, ele a sua agente, pareciam entender um pouco mais  de números e de preços e parecia dono da mais moderna van que se encontrava no parque de estacionamento.
O fascínio dos humanos pelos desígnios da sorte, e a superficialidade dos ocidentais na avaliação das subtilezas culturais do oriente e a nossa ignorância desta nossa fraqueza, levou-nos ao júbilo.
Este motorista e a sua linda van bem podiam ser os símbolos do novo capitalismo de marca chinesa, onde, finalmente, se tinha encontrado a solução para a frágil (e passada) equação entre a qualidade e do preço.
Mas o defeito é o da natureza humana e, ao motorista clandestino, faltava-lhe provavelmente a licença para nos conduzir e esta terceira variável da equação deixou-nos a nós, sozinhos no meio da mata, enquanto o homem, assaltado pelo receio da sua própria ousadia, atirava pedras contra a muralha com a mesma impetuosidade com que tentava explicar a P num chinês tão convincente como impossível de traduzir, que era preciso que voltássemos a pé para a porta e que fingíssemos não o conhecer.
Ou isso, ou outra coisa qualquer, porque nem P nos explicou, nem nós nos aventurámos, sós, para lá da mata selvagem porque, afinal de contas somos ocidentais, mas não tínhamos camelos de duas bossas.
E tal como tudo começou, logo terminou porque, entre ser apanhado ou ser denunciado, preferiu enfrentar o controlo policial que, ou distraído ou compensado pelo gangster, não bloqueou a estrada nem nos dirigiu um olhar, sequer.
E, ainda hoje, nos questionamos se o insolente não nos queria apenas provocar a angústia ou renegociar o preço.
Como, à chegada ao hotel surpresa, inspirado no estilo dragão dourado, onde proliferavam os mármores, o vermelho, os balões e as imagens redentoras, não nos questionámos, sequer, por que razão nos tinham reservado umas instalações tão modernas que até refletiam a luz exterior no chão de mármore e nos espelhos que bem podiam forrar os tetos da entrada principal.
Para o P, sobrou um enorme veado na cabeceira da cama, com um olhar decidido, no seu tamanho natural e no híper realismo revolucionário de quem o criou.
Para nós, outras criações menores.
Nesta cidade (re)criada a régua e esquadro, numa modernidade simplória, estes chineses do interior já olhavam para os pouco ocidentais que os visitam e as muitas crianças que pululavam na urbe faziam-nos especular que este talvez fosse um dos destinos internos de colonização prioritária, um posto de retaguarda da grande fronteira do noroeste, onde os colonos descansam e mantém as famílias no seu espaço de conforto, enquanto constroem com fervor – e certamente algum prazer – o exército do futuro.
Pelo menos, essa era a imagem que nos esforçávamos por desenhar, na nossa ignorância, enquanto nos lambuzávamos de refeições picantes a baixo preço e entornávamos cerveja com o mesmo compasso com que prevíamos o futuro da ditadura esclarecida.
Enquanto os empreendedores esfregavam as mãos, libertavam mesas de chineses solitários e desfaziam-se em disponibilidade e em sorrisos com a nossa fome, mas sobretudo com a nossa determinação em confinar as nossas dúvidas, com a vontade de comer.
A quem paga (quase) tudo é permitido
Quando, tarde adentro, iniciámos a nossa incursão nas dunas (mais altas do mundo) do princípio do deserto que nos transporta para o início da rota sul, em direção aos territórios da Ásia Central, já nos considerávamos especialistas em areias movediças e, especialmente conformados com a persistência (e método) com que os chineses transformam os caprichos geográficos em parques de diversão para consumo interno.
Mas, cento e tal metros acima, a visão das areias sem fim imaginado, colocou-nos nos trilhos da rota sul e, mesmo sem camelos de duas bossas disponíveis (havia camelos, mas estavam ocupados a passear turistas chineses calçados de pantufas laranja até ao joelho – as pantufas eram para proteger das areias, mas o laranja era basicamente um esforço de domar o veado que não abandonava a cabeceira do P.), sentimo-nos predestinados a grandes feitos.
Mas decidimos antes, voltar as costas a muitos meses de areias e tormentas, e correr dunas abaixo na direção do oásis, porque sabíamos que a fome iria voltar e que, se perdêssemos demasiado tempo em terras desabitadas, iríamos perder a essência do que distingue esta rota das outras.
Na praça principal preparava-se a festa, instalara-se um palco construído para permitir vistas largas, demasiado largo para a dimensão da praça, porque a cidade é pequena, mas o tamanho do palco assegura-nos que, um dia, a cidade vai ser grande.
As danças são chinesas, mas festeja-se o fim do Ramadão, as dançarinas são muçulmanas,  mas os fatos são rosa garrido com bordados dourados e a música, os gestos e movimentos, refletem a graciosidade contida que nós, ocidentais, nos habituámos a associar à China de outros tempos.
Por detrás do palco emergia a mesquita local, com a mesma solenidade da sede do partido, porque é relevante que o enquadramento seja adequado, enquanto o âmago da praça se enchia de mestiçagem e de famílias e, até os mais céticos, passaram a acreditar na versão oficial de que há sempre a possibilidade de que a mistura se transforme numa raça única e que assistamos a um período histórico de aproximação com base no aproveitamento do melhor que cada raça, religião ou cultura pode acrescentar ao denominador comum do relacionamento futuro entre povos.
Obviamente que estávamos todos à mesa, na esplanada e rodeados de cerveja e comida picante.
As dançarinas eram jovens e muçulmanas e tiravam muitas fotografias connosco enquanto se riam de curiosidade, perante a indiferença da autoridade local e o olhar reprovador de uma transeunte Huan, que abanava a cabeça e murmurava uma elaborada conjura verbal.
Sem razão nem justificação, o fim de festa coincidiu com a entrada na praça de uma brigada swat, muitos soldados de camuflado, não se anteviam distúrbios à ordem pública, mas também não era necessário porque os miúdos que se escondiam por detrás das viseiras de plástico, não revelavam quaisquer sinais de mestiçagem e os seus olhos espelhavam as instruções de que a ordem pública é uma especialidade de medicina preventiva, assim foram treinados, essa era a missão de um exército e de uma polícia, que garante um território uno e coeso.
E, para quem ousava olhar os miúdos nos olhos, havia vestígios de pânico contido, espelhados nos escudos que os protegiam, porque a sua idade não lhes permitiria saber como agir se o Ramadão, por aqui, não fosse apenas uma cerimónia protocolar.


Perante a indiferença do panda kung fu, dos personagens do mercado noturno, das peças de jade, dos balcões forrados de frutas secas e especiarias desconhecidas, do artesanato local ou dos produtos de consumo de massas e  de uma cidade que volta a acordar com o pôr do sol, porque, com a noite, as poeiras do deserto dissipavam-se e os habitantes locais voltavam a respirar sem máscaras e a sorrir com as luzes.  
O A e o J sorriam também, e bebericavam chá gelado com sabor a fruta, enquanto as jovens explicavam a origem dos bules, do chá e das frutas, sorriam coradas quando eles elogiavam este oásis de bom gosto, treinavam sem receios os primeiros passos desta nova dança chamada inglês e, com uma curiosidade que se refletia nas montras iluminadas da loja, aventuravam-se nas técnicas de qualificação previa dos clientes com vista à maximização das vendas.
Sem entender bem se estas jovens, sofisticadas no vestir, e simples no olhar, no rir e no corar, seriam um produto do regime ou dos ventos de mudança que sopravam das montanhas das areias cantantes.
Com o sabor de chá de frutas, a proteção do veado, embalados pela música das dunas e no conforto das areias movediças, poderíamos ter sonhado toda a noite com a importância estratégica de Dunhuang no cruzamento do corredor Sul da rota da seda com o caminho principal que ligava a India à Sibéria, a Sul através do Tibete, para Norte através da Mongólia.
Sem certezas, nem nenhuma ordem de importância definida.



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