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segunda-feira, 4 de novembro de 2013

As ruínas da sardinha






“Posso-lhe entregar uma mensagem bíblica?”
Pousei-lhe a mão no ombro e abanei a cabeça:
“Não tenho tempo, ando à procura das ruínas da sardinha!”
Atónito, o crente recusou a minha mão, afastou-se assustado de bíblia em riste e assumiu, de forma aliás pouco cristã, que eu tinha doença contagiosa.
E eu lembrei-me de uma frase bíblica de um velho e resistente industrial conserveiro de Matosinhos, em resposta à pergunta de jornalista, intrigado com o facto de manter na família uma indústria por mais de cento e trinta anos:
“ Deus e vontade divina”
Faz pois todo o sentido, esta nova invasão de seres bíblicos nas largas avenidas de Matosinhos Sul, especialmente agora que já não vemos a agitação dos pescadores, as centenas de mulheres operárias vestidas de branco, de faca em riste na mão direita e marmita na mão esquerda, pela rua Brito Capelo fora.
A nossa geração tornou-se mais do género espiritual!
(E as primeiras ruínas que vislumbro servem de sombras aos novos homens do mar em cuecas, pranchas em vez de traineiras, risco por risco que seja na rebentação das ondas e com a terra bem à vista)
E do género desportista!
“ A nossa matéria-prima é muito sensível porque, neste momento está a nadar e depende das licenças de pesca, que são cada vez menos”
Pois, mais pranchas e menos traineiras, falta de peixe mas não de ondas no mar!
Matosinhos Sul é o reflexo das nossas aspirações em aliviar as difíceis condições de vida da indústria “retro”, uma legítima vontade de trocar o trabalho de sol a sol pelas amenidades do desenvolvimento, que prometem tempos livres como recompensa de uma mais alta produtividade.
“Temos o mesmo que tínhamos, só que mais concentrado”
Enquanto dura o contraditório, a frente mar abate os armazéns numa onda de maremoto e erige torres de apartamentos de vistas largas e com assinatura de arquitetos famosos e a obra do autarca estende reluzentes pistas vermelhas para ciclistas, que atraem novos cidadãos residentes com automóveis desportivos que aceleram velozmente sobre uma passadeira indefesa, lojas de artefactos orientais e lofts, e ginásios em armazéns industriais, (o definitivo triunfo do género desportista), bares e uma nova vida noturna, armazéns industriais transformados em habitats do pirata das caraíbas…
(e quarteirões vazios, cercados de paredes com janelas para lado nenhum, que são os novos monumentos da antiguidade industrial)
Quarteirão sim, quarteirão não!
 “Já foram cinquenta e quatro, hoje são apenas quatro”
E nos quarteirões sim, as ruas transversais respiram de árvores frondosas e (provavelmente) tão centenárias quanto as indústrias defuntas, arruinadas, ou porque os herdeiros não se entendem ou os novos empreendedores ainda não digeriram a extensa oferta da crescente densidade populacional da nova cidade virada para o mar.
A arqueologia, o esquecimento e o abandono, são a melhor garantia do equilíbrio ecológico.
Prédios, vidro e cimento e avenidas largas no eixo norte/sul, fachadas em ruínas e árvores frondosas na longitude este/oeste.
“Hoje, a conserva está na moda; não é mais um produto de emergência mas uma iguaria gourmet, enquanto houver peixe português”
Mas são já poucas as mãos femininas que esfrangalham a sardinha porque “é uma matéria-prima muito sensível e, por isso, têm de ser trabalhadas pelas mãos das mulheres”
Mais um quarteirão vazio, de ruínas e grafitis, entre lojas gourmet e de moda exclusiva
E, no fim da alameda, assoma o moderno elétrico amarelo chamado metro que devolve a rua aos peões.
Mas quem tem saudades da agitação dos pescadores e das mulheres pela Brito Capelo fora, de fardas brancas e marmitas?
A vida árdua fica sempre melhor num museu, mas é difícil medir o impacto das memórias no PIB.
Mas para alimentar o contraditório convém referir que as exportações de conservas continuam a subir!


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