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domingo, 1 de novembro de 2009

Noites Longas, Deuses Loucos



Memórias longínquas, 1983

A noite tombou sobre uma pirâmide de seres, como um roupão cheio de astros, pintados num céu provocante, que deixava rastos brancos (de branco?), estrelas cadentes ou o prelúdio da fecundação da terra e do mar!
O mar prateado (seria da lua?) derramava-se sobre os calhaus que rolavam de êxtase, onda após onda, tontas como as sombras aveludadas dos seres primitivos que povoavam a enseada. (seriam mesmo humanos, ou apenas sombras?) – não digam jamais que não vivem fantasmas entre nós -
Deslizando encosta abaixo, os fumos entrelaçavam-se no ar profuso de cheiros frutados e entonteciam os pinheiros, que de tão mansos, se assustavam e se revelavam ciprestes, um fenómeno inexplicável neste Mediterrâneo profundo, árvore premonitória da loucura dos selvagens que adoravam a interminável fogueira (estariam nus os selvagens, ou seria apenas o reflexo das sombras que se banhavam no fogo e no mar).
Havia ruídos de cigarras nas envenenadas e múltiplas cabeças das serpentes que emergiam das ondas a um ritmo alucinante, atiçavam o fogo e os selvagens dançavam ao som de batuques que não se ouviam (Seriam as cigarras? Seriam as serpentes?); a lua entornava-se vagarosamente neste mar, primeiro cândido, depois subitamente incendiado pelas línguas das serpentes que transmitiam o fogo ao mar, e o enfureciam num maremoto de espuma e cores, movimentos submersos que encapelam as profundezas (quaisquer que sejam); os seres nus (eram definitivamente humanos) abusavam das serpentes, chamavam os animais ferozes, furavam o mar de sofreguidão e de estranhos rituais de prolongado e ancestral prazer.
A enseada mal se continha na sua pequenez e assistia impotente ao emergir do Sol em plena noite (era o fogo a fecundar a lua), as sombras transformavam-se em formas bem definidas, falos pendulares e fêmeas que eram lobas que uivavam sem cessar, presas despedaçadas nos calhaus da enseada; sentia-se o cheiro a sangue queimado, arfar roufenho da longa cama de pedra que engolia sofregamente todos os seres que não deviam povoar esta cena.
Sem aviso, um clarão sem precedentes nasceu da fogueira, cruzou-se nos céus com as estrelas cadentes em fogos de artifício de espanto, gritos lancinantes que se confundiam no Juízo Final com o prazer dos corpos, tão sôfregos que se tornavam num só (selvagens, lobas, serpentes e cigarras); uma sombra elevava-se sem mácula do carvão, do esvaziamento da luz, do vazio, a mais incompleta definição conhecida do buraco negro, nada simplesmente nada, o vácuo depois do tudo... e a sombra tomava forma (haverá formas no vácuo?).
Lúcifer crescia irremediavelmente para o céu, agora laranja, Sol que substituiu definitivamente a Lua e apenas silêncio...sem aviso e uma última pedra solta tombou sobre os corpos inertes na praia.
Pedro acordou estremunhado, desconfortável, levemente enjoado, seco como uma casca de sobreiro e sentou-se a custo sobre o dorido traseiro. O Sol resplandecia, o mar tépido, lago de reflexo, acenava-lhe com ondinhas de trinta centímetros, espelho da magia de Hydra, pérola no Mediterrâneo profundo.
À sua volta, quase nada e ninguém, apenas a sua mochila bicolor, ligeiramente entreaberta, um pedaço de papel preso, sem razão, e ele completamente nu no areal reluzente, as primeiras carumas da manhã, prenúncio de Outono precoce, intrometidas nas covinhas da areia e um par de garrafas que se recusavam afundar (quem seria o mensageiro ou o líquido alucinogénico), lá longe, para lá da ondulação, plof, plof, plof!
Apenas as cigarras continuavam a cantar!
De Miguel não havia sinais e na sua memória apenas uma ténue batalha com o Deus Baco, luzes e música junto ao cais de embarque, a única chegada desta ilha, uma fauna de gente, Miguel que se encharcava em cerveja e falava de um amor longínquo, saudades, prisão, (lembrança de marinheiro longe do mar?) momentos únicos sem repetição e precisava de voltar depressa no primeiro barco da madrugada! para o púbico e louro embalo da Germânia inebriante.
De Miguel nada mais, havia-se desvanecido!
E as recordações acordavam devagar da sua cabeça pesada e procuravam competir com o calor deste Sol (e ele jurava ouvir gargalhadas vindas do Além, mas as miragens também podem ser sonoras); e nos becos caiados de branco, a noite reflectia as pedras redondas da calçada e nos espelhos baços do chão (polidos pelo caminhar dos profetas?), apareceram reflectidas a Lua; e entre os estilhaços dos pratos quebrados com muito ruído e sem nossa licença, nasceram Mónica e Rebecca, destino alemão neste paraíso de Gregos.
Estranho, Miguel não se tinha despedido, sequer!
Mas havia mensagem presa na mochila bicolor (azul e vermelha) sabe-se lá quando ele a escreveu, demasiado lacónica para quem está perdido de amores.....
Vou atrás dos meus impulsos
Diverte-te com as emoções satânicas
Encontramo-nos...no Além!
As memórias ainda choravam incompletas, doridas e combalidas.
A noite teria sido longa? Como teria aqui chegado? Tantas dúvidas que o convenciam que poderia ter sido uma noite ardente (mas olhava suspeito para o seu desconsolado fecundador – não havia sinais evidentes....) e mergulhava solto no mar sereno, procurando limpar-se de uma noite sem identificação!
Teria sido sonho ou teria sido sexo?
Com a água salgada, começavam a dissipar-se as dúvidas; os anjos invocavam Satã, e tinham um buço tão comprido (como os bodes?) que impregnavam a cheiro de hambúrguer demolhado num licor – anunciava-se um bálsamo afrodisíaco – peitos cheios como uma lua generosa, que se tocavam amiúde num encaixar cúmplice; sim, trocámos brindes sem copos, junto ao pinhal, canhões que apontavam para o mar e para as luzes da costa grega; elas tão próximas entre si, segredos inconfessáveis, orelhas húmidas, havia certamente referências às estrelas cadentes que povoavam o ar inúmeras e incontáveis, bom presságio para uma longa noite de insondáveis e diversas opções, noites que aqueciam naquela fortaleza próxima do cais, inclinada sobre o manto de prata e negro, adivinhava-se mar!
O licor aproximava o Céu e a calçada e já não se ouviam os pratos estilhaçados nas ruas da aldeia; recordo-me do nevoeiro que me submergia a caminho da praia, convite disputado (por eles ou elas?), desejava-se um longo banho de mar ou desejava-se a Lua?
Pedro, ainda só nesta praia do Mediterrâneo profundo, perscrutava as garrafas que lentamente sulcavam as ondas (meros enrugamentos do mar sereno) num apelo à terra firme, deprimia-se só e sentado junto ao desfalecer do mar em sal, o licor e o nevoeiro tinha-lhe ocultado todas as sensações, uma falésia desconhecida, uma enseada intacta nas suas memórias.
Miguel desaparecido e os anjos evaporados!
Terá sido sonho, ou terá sido sexo?
E as garrafas desaguavam com vontade própria nos seus pés enterrados na areia fina, água morna.
- Uma mensagem na garrafa gémea? – Espanto sobre as luas, imaginavam-se cheias, os seios das amigas da noite, tão gémeas, sorrisos cúmplices nos ouvidos (delas), não havia já recordação de beijos (delas ou com elas?), já não havia recordação possível, porque o nevoeiro do licor tinha-se embrenhado na mente solta, sem ordem nem rédeas.
Teria sido um sonho......
A garrafa tinha mensagem (message in the bottle) uma letra definitivamente feminina (então não era buço de bode, era de cabra) e de uma firmeza indubitável, uma repentina e gelada onda gigante que inundou a enseada e afundou o sonho:

No condom, no sex! Kisses M & R

Hydra 198?

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