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domingo, 5 de janeiro de 2020

SILK ROAD #12 – Latidos na terra de ninguém





Os três rafeiros, habitantes da zona de ninguém, descansavam na sombra da guarita do último reduto chinês, sem culpa e com uma conivência descomprometida dos últimos soldados de farda suja e coçada, mas levantaram-se à nossa chegada e lideraram a passagem da fronteira a salto, ladeira abaixo, cauda a abanar e orelhas em riste. 
A chegada, fomos recebidos pela hospitalidade da Ásia Central, por fardas ainda mais coçadas, uma total ausência de sistema, de organização ou processo, armas tão enferrujadas que denunciavam a sua inutilidade, bem para lá da última curva da terra de ninguém, e entrámos no primeiro perímetro de defesa quirguiz sem mostrar passaportes, afinal de contas, Portugal é sinónimo de vedetas mediáticas do desporto chamado de rei. 
Os nossos amigos caninos esses foram corridos à pedrada, ladeira acima. 
No Quirguistão não suportam colaboracionistas. Especialmente com os chineses.
Um bando de turistas chineses que vieram experimentar a terra de ninguém juntam-se numa fotografia de grupo com a estrela amarela em fundo vermelho pintada na encosta fronteira e, em grande alarido e excitação lançaram-se ladeira abaixo sem passaportes nem controlo para observar o primeiro posto de fronteira do Quirguistão de um mirante construído pelos donos da colina porque afinal, mesmo na terra de ninguém, existem sempre os uns e os outros.
E há quem sugira que estes chineses estão sempre a empurrar os limites para ocidente.
Pela ladeira acima, em direção à China empilham-se os camiões quirguiz que adivinham dias de espera, uma nesga de oportunidade para colocar os produtos na grande mãe do oriente, enquanto os chineses desdenham, fazendo-os esperar, sem aviso nem critério.
Na nova terra, os camionistas revoltam-se à procura de um lugar mais próximo do sol nascente, enquanto os táxis informais se atropelam na zona de segurança máxima para angariar os poucos clientes que atravessam a fronteira a salto, sempre com o beneplácito suspeito dos guardas.
Chegámos à fronteira do fim do mundo pouco depois da pausa de almoço porque sim, esta travessia permanecia encerrada todos os dias durante duas longas horas, não porque esta interrupção fosse necessária para alimentar o regimento dos guardas, mas como uma forma de refrear a leviandade dos viajantes por teimosia.
Se entendêssemos a língua, certamente estaríamos avisados para os grandes desafios do presidente e da nação, desenhadas em amarelo nos placards vermelhos plantados na paisagem, aliviando a monotonia das cores dos montes e vales, milhares de tons de castanho, em direção à fronteira.
E eventualmente teríamos entendido as diversas prioridades estabelecidas nas filas de espera, junto ao que julgávamos ser o último posto fronteiriço, antes da Ásia Central.
Estatuto ou atrevimento ou apenas uma componente da máquina processual de desencorajar liberdades de movimentos, que se possam tornar excessivas, com o hábito.
E porque a redundância é um processo tecnológico e de gestão, que tende a reduzir os riscos de erro, e a independência dos diversos reguladores é uma forma, como qualquer outra, de evitar desastres, fomos conduzidos lentamente e de uma forma, na perspetiva deles, metódica, na nossa, aleatória, de controlo em controlo – afinal de contas tantos dias a vaguear pelo ocidente chinês, pode configurar uma interminável série de delitos ideológicos – até aos últimos metros da grande marcha, o edifício da fronteira, o posto de controlo avançado da fronteira e até ao arame farpado propriamente dito, onde o nosso passaporte é validado pela vez número seis.
Alternando entre as caras fechadas, os gestos bruscos, uma total indiferença pelos nossos segredos, mesmo que inexistentes, alguns leves sorrisos e diversos desentorpecimentos musculares quando se falava do astro da bola, uma educação sem excessos e alguns laivos de gentileza e disponibilidade logística como se fizesse parte do processo, sem que, contudo, nos fosse permitido tomar como seguro qualquer passo seguinte.
E, por fim largaram-nos, com um alívio quase indisfarçável, na terra de ninguém.
E cinco quilómetros bastaram para que entrássemos num turbilhão de novas dimensões, como se a China tivesse acabado de se desconstruir ladeira abaixo, como se a terra de ninguém fosse apenas um prelúdio para uma nova dimensão, e cinco quilómetros bastaram para testemunhar os efeitos da queda de um império, as estradas que perderam alcatrão sob o efeito do tempo e do esquecimento, os camiões militares transformados em galinheiros, por falta de peças mas sobretudo pela sua inutilidade perante os desígnios de uma nação que nasceu de um descuido dos pais.
E quando completámos os cinco quilómetros de descida aos antípodas da realidade aumentada a que os chineses nos tinham habituado nos últimos dias, (edifícios de vidro que resplandecem de novo, estradas que não refletem uma ruga sequer, apenas pavimentos brilhantes, traços cuidadosamente desenhados e uma sinalética que exalava ousadia) regressámos abruptamente ao hiper-realismo soviético dos lugares esquecidos nos confins do império, lugares despojados de referências, em tons pastel, com corredores que existem como divisões próprias, portas, muitas portas, de madeira e vidros foscos, guichets, muitos guichets, revestidos de castanho, madeiras que se corrompem com um caruncho chamado tempo, um lugar que se queria manter fiel ao ideal construtivista, queria ser uma marca da grandeza do regime à vista do império vizinho, mas que sabia, de antemão, que nunca teria o protagonismo que motivasse uma condecoração ou um louvor.
E, no fundo do corredor, enfrentamos os despojos humanos que, da distância e da solidão, ainda não entenderam se são o último bastião do regime ou apenas um farrapo da história recente.
As mesmas fardas coçadas e olhares inquisidores que, na ausência de instruções e de objetivos, se tornam, primeiro em interrogação, depois em desconforto e, depois de percorrer corredores e cruzar portas, soletram a nacionalidade, exercitam o bigote e colocam um sonoro carimbo nos passaportes de quem entra no seu novo país.
Como se tivéssemos recuado algumas dezenas de anos, em poucos quilómetros,  nas referências visuais e nos gestos, e até na ideologia e nos propósitos, mas fora do contexto original, mais de trinta anos depois da história passada.
E quando fomos admitidos no  Quirguistão, logo a natureza nos envolveu e apagou a curiosidade, é definitivamente uma terra diferente mas, nesse dia, nem um minuto nos recordámos da importância dos desfiladeiros de Irkishtan e das montanhas Pamir ao longo da história da rota da seda e no destino dos povos quirguiz. 
Enquanto desfilavam, ao longo das janelas da mini van do amigo de P, os planaltos de verde, as cordilheiras de branco, as centenas de tendas e de famílias que ainda vivem da pastorícia nómada,  não deixávamos de pensar que os rafeiros colaboracionistas bem poderiam ter escolhido melhor os seus donos, as suas conivências e fidelidades.
Aqui respira-se melhor, na perspetiva de um cão vadio.


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