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terça-feira, 31 de dezembro de 2019

SILK ROAD #11 – Cheiros de fronteira




Uma nuvem de poeira vinda do deserto cobriu hoje a cidade de Kashgar, como uma mensagem da cidade que obriga os visitantes a regressar ao universo das verdades viscerais e a renunciar ao paraíso da paz interior que habita no silêncio dos lagos espelhados
E quando nos embrenhamos nos cheiros e nos sabores do mercado noturno, os fumos que sobrevoam as ruas da cidade dispersam as memórias da estrada dos Himalaias, as narrativas das aventuras de Alexandre o Grande, da fé do santo que introduziu o budismo na China, da curiosidade  de Marco Pólo na visita as cortes da India, do oportunismo do reino de Tashkurgen e da sua habilidade na gestão dos direitos de passagem, na derivação Sul da rota da seda, em direção ao leste.
A silhueta dos homens e mulheres que envergam braçadeiras vermelhas revela as mesmas influências, a mesma nacionalidade segundo a linguagem oficial, que os  habitantes das montanhas, uns encardidos pela poeira do deserto e pelos fumos da civilização, outros pelos ventos gélidos que percorrem os desfiladeiros, mas não há semelhanças entre as expressões duras de uns e uma ingenuidade que se alimenta do ar puro das montanhas dos outros, numa irreconciliável diferença de cidadanias.
 O nosso astuto, alinhado, e poliglota guia não tinha dúvidas que a cidadania chinesa era o denominador comum da nacionalidade uigure.
Responde sem hesitar a todas as perguntas referentes à sua família ao seu trabalho e à nação na qual vive e para a qual trabalha, explica-nos detalhadamente o conceito de propriedade e usufruto, as religiões, a vida em família e os filhos, tudo respondido com a mesma objetividade que as perguntas pediam.
Sobre política, subjetividade e outros valores nunca haveria respostas e ironizava com a vigilância e o controlo policial e sim estava a ganhar uns cobres extra para nos vigiar (risos)
Mas nesta transição entre as montanhas e o deserto, o poliglota seguidor da ordem demonstrou dificuldades em enquadrar o papel dos nómadas na pirâmide social do regime.
Por isso, enquanto devoramos caldos com massa flutuante, cuspimos espinhas de peixe frito, tão seco como seria de esperar a milhares de quilómetros do mar, e olhamos com uma desconfiança indisfarçável para a banca dos mariscos e outros insetos, suspiramos pelas sopas fervidas nas tendas plantadas na margem dos lagos de um azul, que nos forçam a respirar a altitude e a absorver todas as alucinações que se inalam dos cumes gelados do império dos sentidos.
Ao longo da estrada que destruía a altitude com a voracidade do regresso às origens, conformávamo-nos com o facto de que o paraíso é um estado temporário, e que o regresso à civilização tem algumas recompensas, normalmente associadas à higiene pessoal.
Apesar dos fumos que a civilização emana, não há maior descida aos infernos que sentir-se um humano preso às necessidades fisiológicas básicas, diante da rede de fossas que ligava os desfiladeiros da rota dos Himalaias.
Regressados à urbe mais carismática da porta oriental da rota da seda, percebemos que a envolvente só ganha relevância porque as passagens em desfiladeiros separam (ou juntam conforme as épocas) mundos e civilizações e são, por isso mesmo, ainda mais inspiradoras que as paisagens alucinantes que nos rodeiam e, mais do que altitude dos seus picos, é o significado de superação que representou para todos os que procuraram juntar mundos ao longo dos séculos.
E a única motivação que uniu os inimigos e os infiéis ao longo dos séculos foi a necessidade de trocar, desmentindo que a globalização é uma infame modernice.
E nos mercados de Kashgar ainda se negoceia em língua franca.
E quando entramos no mercado do gado, desfez-se o feitiço dos cumes gelados, aliás bem visíveis no horizonte, e as primeiras cabeças de carneiro decepadas lembram-nos que o destino do gado é fazer sangue.
E no recinto do mercado a única linguagem é a qualidade e o preço dos bichos, e não há olhar estrangeiro que lhes retire o foco.
E, quando deixámos os bichos entregues ao destino dos homens, deixámo-nos finalmente envolver pelo regresso ao oeste que acentua o carácter distintivo dos novos locais, que cresce na mesma proporção da mistura de culturas e da anarquia dos mercados.
E, apesar dos efeitos da globalização, o mercado de domingo – que ocorre todos os dias – é pertença dos locais, não fosse a nossa indiferença perante a sua cor, o seu cheiro e a sua diversidade, a prova definitiva de que este é um local para quem precisa e, muito pouco, para quem coleciona.
Kashgar tem uma história reconhecida de que há memória (sim, Kashgar não viveu sete séculos sem História e esta é uma das poucas vantagens de se viver numa encruzilhada geográfica) e por isso conserva os sinais do passado e não necessita de construir tão furiosamente o presente, como as margens orientais do grande deserto porque quanto menos profundas e longínquas são as  memórias, maior a resiliência do seu passado.
Kashgar é, por isso, uma cidade com uma cronologia que nos conduz diretamente do auge da rota da seda até à disputa predadora  dos antigos impérios pelos novos senhores da diplomacia e da manipulação, sem que se notem demasiadas peças em falta, em que mesmo o seu recorte de avenidas largas e compridas, essa visão que prefere reconstruir que reabilitar, tem tempo, não nasceu do ritmo alucinante de planificação urbanística das últimas décadas.
E por isso, em Kashgar, pressentem-se os cheiros da fronteira, fechada apenas por conveniências que não chegam a fazer História, mas também as novas imagens de uma modernidade que se se constrói através de uma meticulosa recolha das influências externas, devidamente temperadas pelo espírito milenar e pela ambição das novas asas do dragão.
Escoltados pelas crianças que continuam a nascer, e que se espalham pelas ruas sem medo nem memórias, abençoados pela figura de Mao que abraça uma praça inteira, e envoltos na indolência de uma tarde de fim de semana, espreitando uma classe média que vive longe dos mercados, descobrimos uma nova cidade que procura os espaços abertos e reclama a individualidade no interior do parque de diversões e até em Kashgar, tão longe do centro do império como das influências ocidentais, o passeio de domingo à tarde no grande jardim é um desfile de classes e de modas em torno das crianças e das diversões populares.
O reboliço e as fotografias de família junto aos corações de papel e flores, devidamente emoldurados por uma fonte artificial de água pura, é a revelação de que afinal o mundo até é capaz de ser plano, tão semelhantes são as expressões dos adultos e das crianças, podia afinal de contas tratar-se de um fim de tarde de domingo em qualquer província alegre do, aqui desconhecido, extremo ocidental do mundo chinês.

E o regresso de autocarro é uma revelação de cheiros e mestiçagem onde o velho uigure não se esqueceu de mandar levantar o jovem chinês para o mais idoso dos ocidentais se sentar.

 



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