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quarta-feira, 16 de agosto de 2017

O da boa memória





Lembro-me bem da vista súbita, na curva à direita e na sinuosa descida até ao vale.
Lá em baixo, no limiar da dupla faixa de rodagem da nacional 1, permanecia o mosteiro, tons amarelos num decampado poeirento que bem poderia representar a vitória triunfal de D. Nuno sobre os intrometidos espanhóis.
Era uma imagem repetida, um marco das viagens rodoviárias ao Norte.
O mosteiro solitário, imponente, orgulhoso e desafiador.
Tal como os primeiros séculos da afirmação de um novo reino, de poder real e da autonomia de um país.
Tão importante que se afirmava na solidão da paisagem, como se fosse esta a forma de realçar as suas características únicas, o esforço despendido na sua construção, ao longo de mais de cento e cinquenta anos, e uma espécie de grandiosa Ermida em memória da dinastia de Avis.
Um projeto de legitimação.
Hoje, o mosteiro foi reduzido à sua própria dimensão, pela intrusiva malha urbana nascida da fama e do proveito da república.
Desvaneceu-se a auréola exterior e a singularidade do momento, na mesma proporção em que se partilhava a nossa memória coletiva com o mundo.
Porém, intocável na sua essência interior, cruzando a porta principal, virando a sul para a sala do capítulo, assegurando que o fundador da dinastia indicava o caminho do império ou atravessando a capela-mor para leste, desafiando os nossos truculentos vizinhos onde, ainda hoje permanece uma auréola mística de um claustro inacabado, inundado de um silêncio redentor.
Como se o mosteiro precisasse das capelas imperfeitas para se completar.
Como se houvesse uma qualquer conjugação de astros que explicasse a disposição dos claustros e uma abóboda feita de estrelas.
Lá fora, no antigo terreiro poeirento, renascia a nova feira medieval, como se não tivesse havido História depois de D. João I.
Assavam-se borregos ao luar, o David Carreira desafiava um público fácil e contorcia-se contra o som, um inimigo muito mais devastador que os espanhóis de Aljubarrota.
D. Duarte sorriu, olhou para D. Leonor e estendeu-lhe a mão.
E todos percebemos o significado das capelas imperfeitas.
E, apesar de também entendermos que os tesouros não podem ficar só para nós, não deixamos de ter saudades daquela visão intermitente e repetida do majestoso e solitário mosteiro amarelo que abarcava toda a paisagem e se nos deparava, pelo menos a cem à hora, sempre que nos preparávamos para ultrapassar um camião de mercadorias, no limiar da dupla faixa de rodagem da estrada nacional 1.

Eu e o da boa memória.
















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