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segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

O mundo é (está) plano


(primeiro plano)

A luz é ténue, filtrada pelas pipas de vinho, pelo calor que se escapa da cozinha queimada pelo tempo, pelas portadas de carvalho que rangem a cada raio de Sol que se intromete nas frinchas e no caruncho.
Os velhos arrastam os pratos em nome da tradição e, lá dentro, não se ouvem vozes enquanto os lugares vazios se impacientam com a lentidão dos passos e com a solenidade fúnebre dos empregados de mesa.
A mesma poeira que lhe cobre os rostos, que lhe eriça as barbas e que confere à garrafeira um subjetivismo quase romântico.
Na parede do fundo, uma imagem de Eça lança a incerteza de uma dedicatória irreconhecível sobre o ideário romântico que povoa a sala de jantar.
Longe dos ruídos do exterior como se, ao abrigo da tradição, fosse possível parar o mundo.

(plano intermédio)

No museu do neorrealismo procura-se recordar a história do século vinte à luz dos princípios do realismo socialista, defendendo uma arte útil, dedicada aos problemas reais da sociedade.
À parte dos equívocos que história nos causou, permanece viva a dialética entre forma e conteúdo que povoou as discussões de um século inquieto, rico em pensamento e sangrento na ação.
Na rua Alves Redol, já se dissiparam as poeiras do tempo, mas os visitantes são raros neste mausoléu de modernidade e arquitetura contemporânea, um legado de um novo século de políticos ambiciosos e de eleitores desinteressados.
Aproximamo-nos do rio e da linha férrea, uma espécie de meio-termo entre o romantismo positivista e o neorrealismo, mas os guardiões do templo partilham do bocejo dos que se atrevem a entrar e investem em direção aos portefólios fotográficos de difícil leitura que invadem o local sob o manto protetor da bienal.
Só, no auditório, predisponho-me a observar um qualquer pedaço do mundo que desfila no ecrã da esquerda para a direita.

(um mundo plano)

Visto de um comboio a andar, o mundo parece plano e, numa viagem de vinte minutos com o autor pelos caminhos do Oriente, sinto a visão a turvar perante a vertigem.
Porque a paisagem se atravessa depressa demais sob a nossa vista, porque, desta forma, nunca aceita uma segunda opinião.
Porque mistura visões de grandes angulares com a imprecisão dos grandes planos de vegetação distorcida
“ A exposição está aqui na biblioteca, tem um link, uma fotografia e uma série de livros e de separadores, e de…”
Não alcancei porque, depois de uma acalorada visita aos bastidores da dialética entre a forma e o conteúdo, declarei-me vencido pela última sobre a primeira.
Entre a linha férrea e o rio, entre o jardim e a paisagem vivia toda a cidade de domingo à tarde.
Uma multidão que enfrentava o resfriado pôr-do-sol, que corria atrás das crianças ou para o comboio que vinha de Tomar ou simplesmente corria  e, sem surpresa, reparei que os idiomas são, cada vez mais, tão diferentes quanto as fisionomias
Sem dúvidas sobre o predomínio do conteúdo sobre a forma, mas sem qualquer ambição de fazer renascer o neorrealismo ou qualquer outra forma de arte dedicada aos problemas reais da sociedade.

O comboio apitou com destino ao Oriente e um casal de chineses reencontrou-se sobre a passagem aérea da linha com um longo abraço, esfuziantes e indecifráveis saudações. 


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