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sábado, 8 de novembro de 2014

Berlin Express, 29 anos

N. soprou uma baforada de fumo reciclado pelo pulmão com uma força de rajada, janela fora.
Se era aqui que se estendia a cortina, então o fumo voltaria para trás.
Mas não! Voou por cima do arame farpado e extinguiu-se para lá da fronteira de ferro ferrugento.
Apesar de ser Verão, N. só vislumbrava planície cinzenta, onde devia haver campos castanhos em pousio, porque a fronteira não é povoada por agricultores ou outros seres sedentários
Então era ali, o lugar
A imagem de um corredor desolado trespassava da estreita linha que apontava a leste, lá fora da janela entreaberta, para dentro da composição, um corredor vazio, cercado de cores amareladas pelo tempo, compartimentos fechados, gente de rostos fechados.
Um polícia, uma carruagem, uma placa numa plataforma de cidade insignificante, que nunca teria acesso a algum mapa, não fosse a fronteira.
Helmsted.
E N. sentiu um arrepio, porque aquela placa de letras negras sobre um fundo branco, naquela língua e com uma caligrafia tão bem definida, quando o destino é leste, é símbolo de diabo.
N. lançou a beata para a linha, porque descobrira que o esforço de emitir sinais de fumo para o horizonte era insano. Não havia ninguém que lhe respondesse nesta, ou noutra linguagem qualquer.
Olhando para baixo, era evidente que milhares doutros tinham desistido antes dele, por tédio da longa espera ou por falta de incentivo. A linha estava pejada de beatas, conclusão óbvia de que este lugar não era a fachada da frente, para ninguém.
Mas a beata de N. incendiou os guardas, porque devia ser diferente, ninguém se pode atrever a querer fundir o ferro, a desprezar este espaço de não terra, a sinalizar uma presença, a enrolar um cigarro, tudo muito suspeito vindo de um jovem sujo, barbudo e de cabelo desgrenhado.
Solene, enfadonho e infame
N. enfiou-se no seu assento, rodeado de alemães incomodados, circunspectos e de cara fechada, e desistiu de ser irreverente.
Afinal de contas, o comboio já estava a andar e o destino, em 1985, era DDR.

E N. nem reparou que, à medida que penetrava nas profundezas do corredor, os campos tornavam-se castanhos – imaginação dele que a leste só havia estepe – e que as centenas de pequeninos pioneiros bordejavam as passagens de nível, e que havia carroças e tratores, tudo muito desfocado pela velocidade deste comboio sem paragens até Berlim.


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