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quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

O taxista que veio do (frio) Teerão



Cai um frio de quebra ossos na noite viking
Copenhaga, -4ºC.
Kokkedal Slot? A hesitação e a inépcia em lidar com o tom tom confortavelmente instalado no veículo que nos resgatara do frio, minutos antes da congelação final, não nos levantou suspeitas, tal era o frio e tal era a confiança cega na civilização nórdica.
Estamos na Dinamarca e aqui, na civilização, ninguém se perde (ou ousa perder)
Mas Kokkedal Slot está a meio caminho do fim do mundo e o taxista hesita…
Tão estrangeiro como nós? – A ideia trespassa-nos o cubo de gelo que obstruía os neurónios nas nossas partes altas!
28 quilómetros para o destino, pareceu-lhe uma longa distância, pareceu-nos que não fazia ideia do que estava a ver no ecrã encriptado do GPS em dialeto nórdico, provavelmente dinamarquês, dadas as coordenadas. 28 quilômetros pareceu-nos ( a nós e a ele) uma eternidade…de centenas de coroas, daquelas moedas de buraco ao meio, que valem mais do que o metal que contêm!
Não, apenas o cuidado de não falhar, uma reconfirmação necessária de quem presta serviço e se preocupa com o destino dos clientes!
O tom tom finalmente arranca e o mapa da cidade, cheio de cor na branca noite escura da cidade, as ruas marcadas a vermelho, as margens a amarelo, como se fosse um videojogo de vilão em riste, trespassando as ruas cada vez mais desertas, luzes laranjas que aceleram nas bermas da estrada, iluminando de forma cada vez mais ténue as fachadas austeras da cidade geométrica.
A (o) meia-noite (meio da noite, imaginamos que a luz, senão o sol, já desaparecera há mais de – quase - um dia) aproxima-se, e a malta civilizada prepara-se para regressar ao seu universo pessoal do chão aquecido e dos edredons de penas 
Começam a sobrar dos outros...
Segundo os locais, são suecos e noruegueses bárbaros a procura de bebida barata
(Barata? Uma arrojada metáfora para quem se assume como os únicos nórdicos continentais)
 A confiança do taxista aumentava com a ausência de queixas do tom tom e as queixas do frio são a sua forma de quebrar o gelo…
“ O frio é nosso amigo…atrai clientes…”
“… O gelo é nosso inimigo”
As incoerências do homem (mas afinal o frio é mau, ou é quente?) são uma fonte de inspiração da condição humana.
E da circunstancial conversa do frio, aproveita para nos explicar que antes (uau, afinal o tipo se calhar não é estrangeiro), este antes revela antiguidade e competência no posto, o frio chegava mais tarde…
“Aquecimento global!” – Foi a ponte encontrada para o monólogo que se adivinhava entusiástico, qual panfletário “ os americanos…” e eu olhava de soslaio para o tom tom, certificando-me de que a linha vermelha não desaparecia do ecrã, “…não acreditam no efeito estufa…” e eu pensava “O que virá a seguir?” e ele não me desiludia “ …se experimentassem ligar o automóvel dentro de casa com as portas e as janelas fechadas…morriam todos em quinze minutos…acham que a mãe natureza tudo aguenta, mas não…”
Ups! Lembrei-me da sua tez morena e a pergunta desenrolou-se qual língua sem vontade própria
“De onde vens?”
“Irão, 21 anos”
E eu fiquei a imaginar a ira do Imã!
Mas ele dirigia cautelosamente, sem qualquer emoção descontrolada.
O meu olhar enregelado (seria do frio ou da forte coincidência sugestiva?) despertou-lhe a compaixão ou o senso prático e politicamente correto de vinte e um anos de vivência no exílio dourado, num país em que “ quem tem emprego está bem”
“Nós (iranianos) somos um povo horrível… lavagem cerebral, enganam o estado, não pagam impostos (pagar impostos é bom) …”
Eu não tinha certezas…se era bom pagar impostos, se este tipo era real, quão bizarra era a anatomia de um iraniano de integração nórdica.
“…Aplicam a justiça pelas próprias mãos, sempre de gatilho armado…têm facilidade em matar”
E a linha vermelha começava a divergir de forma que nem as legendas dinamarquesas conseguiam camuflar.
“Enganei-me!” Pois, eu também percebi
“ Devia ter apanhado a autoestrada de Helsingor” Pois, todos percebemos
Recuperado do engano, provocado pelo seu excesso de zelo, apontou – sempre hesitante – para uma nova alternativa vermelha, e eu percebi que a orientação não era o seu forte
Perdidos à saída da capital!
“Por aqui são mais quilômetros, mas eu desligo o taxímetro quando chegar ao Km 22,5…”
Melhor a aritmética que em orientação e nesta fase eu estava prestes a entender porque é que entre Portugal e a Dinamarca há milhares de quilômetros de diferenças, e certamente os primeiros automóveis sem condutor nascerão neste ninho de tecnologia quase espacial.
Força Irão! Deixa-te ir! Conduzes como se estivesses no espaço.
Encaixado numa nova linha vermelha, mais pronunciada e curvilínea do que devia, agora perfurava com o halogénio a floresta de troncos que bordejavam a estrada, escuro como breu e semáforos ligados em cruzamentos plantados no silêncio e na ausência absoluta de transeuntes.
“Terrível, um povo que não presta. O meu irmão, que vive na América quis lá voltar e eu avisei-o…deu-me razão…veio embora, sem vontade de voltar”
“É um problema de vizinhança, têm maus vizinhos…e todos eles acham que os vizinhos são maus…aqui temos a Alemanha”
Também tu, Brutus!
“ Nunca a democracia vai vingar nestes países…Egito, Síria…”
Ele tinha definitivamente opinião, sustentada e abrangente e, para já, não estávamos em risco; circulava vagarosamente (é o gelo, sabem!?) numa interminável reta e a linha vermelha não vacilava
“ Eu não acredito em religião e os extremistas não permitem que as pessoas vivam em liberdade…é preferível que fiquem lá os ditadores”
Voltavam os cruzamentos, as casas, mas não sinal do mar (e devia haver), não se vislumbravam referências familiares para quem, como nós, já por ali devíamos ter passado hoje.
“ Eu li sobre todas as religiões, primeiro judeus, depois cristãos e a seguir muçulmanos, todos com a mesma origem comum e todos se guerreiam…por isso não acredito em religião”
Vinte quilômetros depois, soubeste que eu era português – para um estrangeiro que já não é estrangeiro e que fala inglês com quem ele entende que não é, de todo, inglês, perde facilmente a noção de que podem haver estrangeiros naquele local ermo e (agora) desconsolado –
“ Há muitos portugueses na Dinamarca…” estava na hora do interlúdio de simpatia para a nação lusitana, “…engenheiros, na restauração e são muito apreciados” agora é que eu já não percebia se ele era um iraniano integrado ou um nórdico com remotas reminiscências persas.
“Vou desligar o taxímetro, não quero que fiques prejudicado, o meu patrão vai entender”
Mas o caminho permanecia pouco familiar e a linha vermelha aproximava-se perigosamente do destino registado e as minhas dúvidas adensavam-se…
“Estamos a 800 metros” sim eu também tinha visto, mas não acreditava, e o inevitável aconteceu, uma estrada bloqueada à nossa frente, uma ponte sobre a linha de comboio e, do outro lado, o perdido Kokkedal Slot.
A única ponte no raio de visão do tom tom dinamarquês de um iraniano integrado que não fazia a ideia (nem estava preparado para reagir a imponderáveis geográficos)
Uma aventura no reino da Dinamarca, quem diria, e o nosso motorista parecia uma barata tonta, as ruas eram cada vez mais estreitas, pátios e parques de estacionamento, vivendas e não havia mais pontes para lá da estrada de ferro, um mar de castanho no aparelho que falava sozinho e, obviamente como máquina não pensante, não dava soluções, porque não havia, a não ser que saísse do quadrado.
“Zoom Out”, ordenei subitamente, achei que era a altura de mostrar a este cego crente na tecnologia do satélite, que nada substitui o sentido prático de orientação de um puro lusitano!
E como por magia, o mar apareceu e apontei-lhe o caminho
Alguns metros mais tarde, já de taxímetro ligado “ Importas-te? Com estas voltas o meu patrão não vai aceitar, eu não te quero prejudicar…”, a linha vermelha descobriu o novo caminho para o castelo encantado.
Força Irão, deixa-te ir!
Cem coroas de gorjeta depois (“ Tens a certeza?” e eu gostei da sua capacidade de autocritica) o taxista de Teerão agradeceu, comovido, de mãos unidas numa longa prece.
Um espírito livre, mas desorientado, na branca e escura noite nórdica.
Mais de uma hora e setecentas coroas depois!

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