Pesquisar neste blogue

sábado, 18 de abril de 2020

SILK ROAD #18 – Last train to Bucara




“Se não tivessem cometido grandes pecados, então Deus não me teria enviado para vos punir”
Ghenghis Khan sabia que as cidades com passado assombravam as suas ambições de domínio absoluto e, por isso, arrasou Bucara, como todas as cidades que lhe recordavam os primeiros senhores da rota da seda, os povos e as tribos que detinham um poder diferente do concedido pelos exércitos musculados e por uma apurada noção de estado, inquietavam as ambições imperiais.
A evocação divina que amaldiçoou os reinos do comércio e do auge das aventuras e da mobilidade, os intermediários no comércio entre os impérios dos extremos do mundo conhecido lançou, para todo o sempre, uma tempestade de areia e de pó, que cobriu Bucara e a outra metade do mundo, uma rota desenhada no mapa que ligava Samarcanda a Ispão, de Merv a Herat, de Balkh a Nichapur.
A outra metade do mundo que ficou na outra extremidade do deserto porque não há mais linha para lá de Bucara.
E a culpa foi dos mongóis e provavelmente em nenhum outro sítio como estas cidades de trânsito se pode afirmar que a história nem sempre é circular e, às vezes, o fim é mesmo o fim.
Por isso a cidade alimenta-se das memórias, e é delas, e com elas, que procura construir um destino que levante a nuvem de pó que cobre a cidade de adobe.
Mas, vislumbrando o mapa mundo, que recentemente se tornou plano, percebemos que o renascer da rota da seda já não passa por ali, e a culpa é dos czares.
Sim, porque a culpa é o principal motor das disrupções da história, mesmo que nem sempre haja consenso sobre os culpados e estes nunca sejam os personagens condenados, no momento em que a história acontece.
E foram os russos, os últimos senhores destes locais, que decidiram que a nova rota nascia mais a norte e se movimentaria sempre mais a leste.
E por isso em Bucara vive-se uma época de não tempo, e um tempo de recriação de um exótico contido, uma experiência de islão sem recriminação, de bazar em moeda universal e numa nova língua franca, qualificações indispensáveis de um homem do meio, uma herança cultivada pelos sogdianos desde as suas origens.
Quando saímos do último trem para Bucara, tínhamos alcançado o meio do caminho, mas a própria cidade afastara-se dos novos caminhos que o ferro impôs às terras áridas do meio e nós sentíamo-nos impelidos a sair dos carris e prosseguir, areias adentro, para o que faltava da metade do mundo.
Tudo o que o primeiro dos mongóis cobrira de areia e destroços para sempre, Merv, Herat até à outra metade do mundo, Ispão.
Por isso, as primeiras impressões do não tempo são de uma imensa perda, impelidos pela ânsia de prosseguir, perseguidos pela maldição de termos chegado ao meio, e sermos obrigados a retroceder, para não poder, sequer, começar tudo de novo. 
Depois, a deceção recompôs-se com a lassidão dos bairros de poeira e argila, varridos pelo calor que propaga a mistura dos sons intemporais da música oriental com os grandes clássicos da música pop, repetidos na mesma sequência, todos os fins de tarde, na hora em que todos os casamentos se aproximam da beira do lago, com a mesma solenidade com que os animais da selva se dirigem ao local e à hora da água, nos confins da savana.
E, tal como qualquer outro sentimento de perda, o tempo novo e os hábitos antigos curam as feridas. Com a contemplação.
Com a contemplação do pôr do sol a incidir nos quarenta e oito metros do minarete de Kalon e nos seus oitocentos e noventa e dois anos de idade.
Com a contemplação da mesquita dos quatro minaretes, construída a uma dimensão de casa das bonecas e que partilha a praça com miúdos ruidosos, idosos que se passeiam mesmo sem a devida permissão de Alá, sentados numa sombra que nos protege do Sol e do bazar repleto de  quinquilharia belicista soviética.
Com a contemplação da criança que nos olha fixamente ao longo dos becos perdidos da cidade esquecida ou das silhuetas dos miúdos que, alheios à luz mágica de um fim de tarde seco e quente, disputam os seus duelos com bola, as corridas de bicicleta e os passeios sem corrente nem filtro na praça de Kalon, concedendo uma dimensão humanista ao conjunto dos lugares de culto e de ensino do Islão.
E, à medida que a poeira da nossa nostalgia se levanta, descobrimos que o segredo da resiliência da cidade resulta dos caprichos que a história dispensou a Bucara, que sempre viveu na sombra das outras cidades do meio, nos primórdios sempre relegada para o secundário pelas cidades a Ocidente e, quando da fúria dos senhores da guerra do século treze destituída de honras pelas cidades do Oriente.
E, por isso mesmo, sobreviveu no casulo dos Emires, os seus grandes senhores de um reino insignificante, que destilaram prepotência sobre os povos locais ao ritmo do calor das estações do ano e afastavam os intrusos com a sua raiva de animal pequeno, dentes afiados e rosnar ameaçador, mesmo que vivendo apenas da fama conquistada através do massacre de aventureiros sozinhos e desarmados que se atreviam a assomar as portas da fortaleza.
Triste, a sina dos espiões do grande jogo.
E assim guardaram o Ark, a cidade dentro da cidade e a reconstruiram vezes sem conta, sempre que o pequeno emirado se atravessava de forma demasiado ostensiva perante os grandes impérios.
Até chegarem os sovietes.
Daí o exótico contido, uma espécie de tradição de emir rural, temperada por oito décadas de bolchevismo que desprezava os heróis do islão, mas despendia pouco tempo com as bordas do império.
A mesquita estava aberta ao público antes da oração da uma da tarde, brilhava de azul turquesa, os fiéis eram poucos, mas não havia reclusão e os hereges eram tolerados, desde que soubessem onde e como descalçar os sapatos e que não confundissem um tapete com um capacho.
Mas o despojamento e a turquesa eram um chamamento à meditação e, por momentos, sentimos os ecos do islão temperado e sábio de Khayyan, longe das multidões e dos cânticos sofridos.
E, enquanto aguardam a próxima invasão dos Seljúcidas do século vinte e um, esperam que, nos próximos, os gestos sublimes se sobreponham à mesquinhez, que os soberanos esclarecidos se imponham aos sequestradores incultos.
A jantar à beira do lago com repuxos de água que refrescam “Shape of my heart” de Sting, à volta de uma cerveja e muitos shots de Vodka.
A percorrer os bairros por reconstruir entre os limites da cidade e o corredor turístico que pretende apontar os caminhos do futuro.
A visitar a última sinagoga e o cemitério dos judeus de Bucara, porque desde a antiguidade que a necessidade de fazer comércio quase sempre se sobrepõe ao absolutismo religioso .
A constatar, sem estranheza, que os chineses são os estrangeiros mais reverenciados neste novo país.
Com a noite a dissipar a poeira no ar, sem o olhar inquisitivo  da criança uzbeque e com a garrafa de vodka sem líquido nem tara, era bem capaz de abdicar da outra metade do mundo e render-me às palavras sábias de Omar Khayyan:

“ A vida de corte não é para mim; o meu único sonho, a minha única ambição é ter um observatório com um jardim de rosas e contemplar perdidamente o céu, com uma taça na mão e uma bela mulher ao meu lado”




Sem comentários:

Enviar um comentário