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sábado, 7 de dezembro de 2019

SILK ROAD #9 – O torneio das sombras






No território uigure o tempo começa sempre duas horas mais tarde e este condicionalismo geopolítico altera todas as perceções na chegada, porque o Sol respeita o regime e apaga as sombras, inunda de cor o depósito de água e de luz os montes brancos que marcam o fim do deserto, mas a cidade entrega-se aos elementos.
E, por isso,  a chegada a Kashgar faz-se ao ritmo da cidade adormecida, os viajantes arrastam-se na plataforma, ninguém parecia querer deixar o sono preso nas carruagens do longo curso, e o sono arrasta-se com as sombras oblíquas que constroem novas geometrias, propaga-se pelos tapumes da gare encerrada para obras, pela destruição criativa que povoa os espaços e até os guardas reservam gentileza e complacência no último portão antes da saída para a rua.
Moderada e certamente perdoada por terem saído do seu espaço de conforto, sinais de que o progresso é tão sôfrego que se torna descuidado, neutraliza os guichets eletrónicos e os balcões de atendimento dos guardiões do templo e da ordem pública e, esporadicamente, até lhes sonega a  soberba.
E a sonolência do tempo adiantado em relação às pessoas é inundada, sem aviso, por uma onda de ásia central, descendentes do império otomano reincarnados numa horda de taxistas, e alguém notou que não havia fronteiras na planície, homens de outra estirpe pareciam ter cruzado a fronteira pelo lado das montanhas, aproveitando as indefinições de fuso horário e o amanhecer tardio.
Agitam-se como se não houvesse dualidade no tempo, um não reconhecido pelo regime e outro pela nação que não altera o biorritmo, em prol do conforto da diversidade religiosa.
Indiferentes à manhã que amanhece tarde porque são oito da manhã, mas parecem seis e, de facto, para a maioria da população são mesmo seis, porque as ruas estão desertas e a luz é oblíqua e por isso, associação retardada, o depósito de água parecia em chamas.
Exceto no parque de estacionamento da gare em ruínas onde se ouvem os sons do bazar e a nacionalidade uigure se apodera da cidadania chinesa, na convicção do argumento, no fervor da sobrevivência e na insanidade da condução, uma fúria que se confunde com o folclore do regateio e com as imagens e os sons das mil e uma noites que jorram do ecrã do veículo , exatamente no local onde esperávamos vislumbrar o taxímetro.
Mas este exército de filhos de Muhammad, montado em camelos amarelos de onde jorram odaliscas dançantes, avança sobre as avenidas sem margens como se ainda houvesse memória da última rebelião  e houvesse um destino traçado, o de cortar o acesso dos oásis uigure dos confortes da mãe china.
Mas a falta de resistência e de interesse dos esparsos transeuntes, engolidos pelo espaço, colocava a insanidade da sua condução dentro da perspetiva da sua própria faixa de rodagem, não há salvação para os filhos do Emir de Kashgaria, porque Kashgar não vive mais numa dinastia enfraquecida nem no vértice do triângulo de três impérios, sedentos do controlo dos mares do sul.
Cedo pela manhã se entendeu que aqui ainda havia finalmente um país uigure, mas não havia espaço para equívocos na cidadania, agora que os russos e os ingleses não estão apenas separados por algumas centenas de quilómetros de montanhas e desertos, nem tempo para o exercício de competências negociais dos aventureiros nómadas
No Hotel Semeon, às nove da manhã, dormitava-se encostado ao balcão da receção, uma trincheira de madeira maciça repleta de escalas de serviço, papéis por arquivar que disputam o espaço com o pó, e que se escondem por detrás do quadro dourado dos câmbios de moeda forte , com os arabescos das prateleiras que expõem peças do imaginário orientalista nas cornijas arredondadas, lembranças abandonadas por um ideal do oriente concebido pela mente dos diplomatas ocidentais.
Ao fundo da receção, uma parede verde cobria-se de camelos esculpidos em prata que caminhavam em caravana ao longo de um cenário de encantar em que a coerência arquitetónica cedia ao romantismo dos lugares exóticos, onde os minaretes despontam das montanhas e o deserto invade a mesquita em socalcos.
Apenas os seis relógios suspensos sobre a montanha, os minaretes, a mesquita e o deserto nos poderiam colocar no centro da intriga mundial.
Em jeito de moldura, da esquerda para a direita, Moscovo, Paris, Tóquio, Pequim, Londres e Novo York, em língua chinesa e tradução ocidental, todas as horas do mundo moderno.
O primeiro impacto com o átrio do Seman Binguan, imerso na obscuridade e nas sombras profundas, é de um reencontro com a familiaridade livresca da mãe de todos os romances de espionagem, vividos  em locais exóticos em estado de guerra latente.
E, por isso, o átrio vazio e pouco iluminado era tão familiar quanto fora do contexto da Kashgar real, exatamente como imaginávamos que fossem as reminiscências do grande jogo, a envolvente mais exótica das tramas diplomáticas da mudança de século, onde os diplomatas viviam e competiam neste remoto oásis, sonhando com aventuras que nunca iriam viver porque consta que o torneio das sombras nunca foi uma ameaça real, conspirando e planeando a queda do adversário, enquanto partilhavam a mesa de jantar e as bebidas no bar, acompanhados de Porto, cristais e guardanapos de linho.
E quando olhavam para a paisagem redentora, entre a receção e as horas do mundo, despertava-lhes a vontade de agitar os nómadas indómitos.
No antigo consulado russo reina a paz do santo sepulcro e os empregados professam os princípios da não ingerência, como se lhes tivesse sido incumbida a tarefa de preservação das reminiscências de um passado de verdades dúbias e de teorias da conspiração que ainda ressoam das suas paredes, nos corredores decorados de cor e de exotismo, nos pátios despidos de árvores e de verde, tudo submerso em frascos de clorofórmio.
Perturbadora esta visão estrangeira do oásis, que não resiste a cada nova imersão da cidade real.

E saímos de novo para o país uigure onde perdura uma visão colorida e cosmopolita da rota da seda, porque, no sangue de Kashgar circulam a ânsia de trocar e, ao contrário do que temíamos, as competências negociais dos aventureiros nómadas.



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