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domingo, 13 de outubro de 2019

SILK ROAD #7 – O rafeiro branco na Terra incógnita




O rafeiro branco é o único que não revela inquietação pela acutilância do estado policial, na chegada a Xinjiang, uma nacionalidade diferente pela raiz histórica e uma mesma cidadania por oportunidade geopolítica.
Rebola-se no alcatrão da via rápida de seis faixas que, das suas sete e meia da manhã de movimento reduzido, ainda exala uma temperatura suportável da brasa que se espera hoje na segunda maior depressão do mundo: Turpan.
Na segunda barreira policial de um dia em que entra uma nova língua no estacionário chinês, o árabe.
Apenas o rafeiro branco se rebola no alcatrão morno, mesmo em frente à mesa do polícia cheia de passaportes e vazia de instruções, como que a relativizar a nossa relevância e a nossa mania de complicarmos o que desconhecemos.
E, aos olhos do rafeiro branco, não há diferenças substanciais entre os nós e os eles porque para ele, falamos todos a mesma linguagem, afinal de contas também nós não distinguimos um ladrar chinês, uigure ou ocidental e para ele, não passamos de um bando de humanos, de raças e roupas diferentes, rebolando-se à volta de uma mesa de madeira cheia de entulho, provavelmente e, segundo ele, para passar o tempo no meio da autoestrada que ainda não tem movimento, não porque seja cedo  mas porque o futuro ainda não chegou.
Achamos nós, não ele, porque estes espaços de quase futuro exalam um forte odor de presságio, mas para o rafeiro branco cheira apenas a alcatrão fresco e a poeira do deserto.
E, no silêncio da manhã na via rápida do futuro, os humanos continuaram a rebolar-se à volta de uma mesa de madeira, muito depois do rafeiro Han se ter fartado e ter desaparecido por entre as bermas cobertas de vegetação, seca e rastejante, daquela que rebola com o vento e transporta recordações pelo deserto adentro, e pelo seu à vontade e forma discreta de retirada, talvez fosse mesmo um cão local.
E era a nossa vez de interiorizarmos as crenças chinesas nos demónios que, para lá das portas para as regiões ocidentais, esperavam os viajantes que por ali se atrevessem a passar, os monstros da terra incógnita.
Mas, ao contrário dos tempos da antiguidade, alguns de nós (pelo menos um de nós) adivinhávamos o que existe para além, somos ou não provenientes das terras do ocidente, e nunca deixámos de nos convencer que os monstros da terra incógnita não passavam de um mito de Adamastor, devidamente fardado, destinado a testar a nossa perseverança e avaliar a nossa fibra, agora que tínhamos abandonado as terras introspetivas da mãe china e nos iríamos embrenhar nas terras das novas multiculturalidades.
Bem, talvez alguns de nós tenhamos acreditado mesmo nos monstros da terra incógnita quando desembarcámos na luz fria do amanhecer, nós e a idosa uigur, conduzidos através dos corredores da gare escurecida pelo tempo em direção a uma sala de espera que se assemelhava a um monumento do antigo regime, e tivemos uma visão que só conhecíamos do cinema, caras fechadas, detetores de mentiras e metais, um guichet e uma eternidade de espera por um destino incerto para os viajantes do expresso da meia-noite, mas eles tinham um ar tão familiar, para quem vinha da China.
Mas ainda bem que havia quem acreditasse que, quando sol nascesse e dissipasse as sombras da madrugada, iria submergir das areias do deserto um cidade repleta de memórias nómadas, um povo que não conhecia de forma precisa os contornos das suas fronteiras e gentes que reconheceriam os estranhos porque o seu desapego às raízes os tornava cidadãos de todo o mundo e de qualquer lugar.
E o cão rafeiro a rebolar-se era um bom presságio.
E a cidade devolveu-nos a agitação e o ruído das crianças que pululavam na poeira que cobria o pátio do restaurante, a mesma matriz de uma alimentação comunitária pela manhã, mas a sala estava forrada de sons e reinava uma anarquia de pão, gorduras e carne e uma partilha de vidas em redor das mesas do pequeno almoço, a primeira refeição do dia era como se o bairro celebrasse a boda dos filhos pródigos, todos os dias, e não havia rostos enfiados na sopa de noodles e olhares desafiando o infinito em silêncio, sem espelho.
A entrada nas portas de Turpan foi quase triunfal, afinal havia razões para que ela fosse impenetrável à intromissão de estranhos, “é o princípio de uma china diferente, menos uniforme, menos imperial” porque prevaleceu durante séculos nesta zona de fronteira a audácia e a inquietação dos povos nómadas.
As primeiras impressões são, por convicção, as que prevalecem no subconsciente quando se alargam os fossos da memória.
Mas em Turpan, a aculturação ao poder dominante é tão galopante que afoga as primeiras impressões, ao longo de um só dia e, o valor histórico das ruínas, como o primeiro local que disfrutámos sem limitações e que datava mesmo do período da rota da seda, apenas prolongou a miragem que crescia com a sede que apenas um magnifico café gelado de origem chinesa ,acalmou.
A sede e as miragens.
A água será sempre o primeiro e o último dos milagres do deserto e, quem a domina, estabelece as regras e os equilíbrios na rede de entrepostos que liga os mercados e as civilizações e o milagre da água em Turpan, explica-se pela engenharia e pelo cálculo exato dos desníveis, uma ciência milenar sem dono preciso porque o mundo já foi global e, nem sempre, as heranças externas se construíram sobre tragédias e cadáveres.
Mas à chegada ao vale, os túneis azul e púrpura irradiavam um sentimento de pertença dos novos donos do deserto e de todas as fronteiras do ocidente.
Uma afirmação folclórica de poder, com chão de vidro sobre a água gelada das montanhas, uma afirmação de superioridade do presente sobre o passado, dos conquistadores sobre os inventores.
E o frio dos subterrâneos de Turpan diluiu o que restava das primeiras impressões, antes ou depois do nascer o sol na planície.
A mesquita de Turpan  é um templo sóbrio, singelo que chora sozinho a poeira dos tapetes que não voam e a fé que não se professa.
Não há fiéis como havia em Xian, também é verdade que ninguém se preocupa em fingir e a mesquita de Xian vivia enclausurada entre jardins orientais e pagodes chineses, e somos obrigados a conceder que talvez a profissão de fé exija algumas cedências formais, (especialmente) aqui ou em qualquer outro lugar.
Mas às portas do deserto as vozes do profeta soam fracas e as mensagens difusas.
As vinhas de Turpan são o ultimo refúgio da comunidade uigur, crianças que brincam nas ruas, velhotes sentados à porta das casas, das oficinas e da pequena mesquita da rua, famílias que dormem e comem no pátio interior, as camas que se veem do exterior e pressente-se que a comunidade professa dentro de portas, as crianças acenam com curiosidade, puxam os adultos para a curiosidade e transportam os seus sonhos, em cima das suas motas de caixa aberta.
Enquanto aguardam, há tinta vermelha que omite alguns símbolos da fé, desenhados em azulejos colados sobre as portadas da rua sem asfalto, que transporta pelo ar os tons de laranja do fim de tarde de verão.
No final da rua acaba o bairro, atravessado por uma avenida de quatro faixas, arranha céus de pequena largura a ameaçar invadir o bairro e um carro de patrulha circula a avenida em baixa velocidade e sirenes de luz ligada.

Não obstante, a velhota sentada numa cadeira no passeio insistiu em virar se para a luz, compor o vestido e posar para uma fotografia de família.



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