Pesquisar neste blogue

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

A rapariga do bar



Infinito para além é o desenho que lhe rasga a pele por conta da aventura alemã, da amiga brasileira e do reencontro na primavera russa, por alturas do circo do futebol.
Nós éramos refugiados do diluvio moscovita que nos tinha empurrado para o lobby do hotel que vivia em círculo aberto com predominância das cores brancas e os formatos de uma nova geometria de espaços.
E ela era a rapariga do bar
Extrovertida, podia chamar-se Irina, mas o nome era o menos expressivo no olhar que saltava ao longo do balcão, que se escondia nas cornijas do bar ou nos levitava dos bancos altos quando falávamos entre nós o português de Portugal.
Mostrou-nos a tatuagem no braço, primeiro com orgulho, depois com uma inquietação que crescia na mesma medida em que os colegas homens começavam a rondar a nossa conversa, de um lado e do outro do balcão, em que as meninas da receção acenavam com as cabeças louras, lá longe, no espaço aberto, e interessava-se pela nossa opinião sobre a cerveja russa, jorrava uma curiosidade tão fluida como a espuma que saía dos barris, “gostam da cerveja russa?” e, perante o nosso acenar sincero, respondia que a amiga brasileira detestava a cerveja russa e que, durante as duas semanas do Mundial, beberam, comeram, divertiram-se e “whatever else” e nós não perguntámos mais nada, por pudor ou porque os outros continuavam a rondar o local, atestando cervejas imaginárias e pratos de salgados para clientes que não existiam no balcão.
E ela mostrava a mensagem cósmica, perguntava-nos se os portugueses entendiam os brasileiros e nós acenámos com a ingenuidade de um povo que fala a mesma língua, mas não partilha os mesmos significados e não alcança o misticismo mestiço dos irmãos além-mar.
Não temos tatuagens, insistíamos perante a incredulidade dela, não entendemos o significado subliminar de infinito para além, nem como mensagem de amor eterno, mas esforçávamo-nos por aceitar, afinal de contas “cada um faz o que está na sua consciência” enfatizava ela não deixando de olhar de soslaio porque os outros pareciam subitamente chamados à conversa quando ela afirmava que já tinha duas tatuagens na perna e nós, por pudor ou porque as sensibilidades russas não são o nosso forte, não perguntávamos mais nem pedimos para ver, apenas acenávamos obedientemente, “sim, claro, a nossa consciência é que conta” e ela perguntava se não bebíamos mais uma cerveja russa e nós, relutantes, dissemos que não.
Ela pareceu desapontada, porque não tínhamos tatuagens, porque concordávamos com tudo, porque não bebíamos mais cerveja porque, mesmo que eventualmente de forma vaga, a nossa presença e a nossa língua lhe lembrava a aventura alemã, e os momentos em que elas se sentiam capazes de transformar o mundo sem olhares reprovadores nem culpas inúteis, como eu a compreendia com, pelo menos, trinta anos de avanço, ou de atraso.
Enfiámo-nos nas profundezas do metropolitano de Moscovo e fomos apanhar o expresso da meia-noite.
Adormecemos sobre os carris que nos levavam para norte e sonhámos muito, com as tatuagens da rapariga do bar, a vontade de mudar o mundo, o dilúvio que caíra sobre Moscovo, as imagens dos veteranos que defenderam as cidades expostas à chuva dos jardins do anel da cidade, as sete irmãs de Stalin, a juventude bem vestida que apenas se queria proteger da chuva, navegar na net de linguagem universal e sons de Amy Winehouse e a chuva que nos tinha perfurado os ossos só porque não queríamos ir embora sem ver a Casa Branca, teimosia latina de não perder nenhuma referência histórica
E com a gigantesca praça komsomol'skaya onde Lenine ainda discursava às massas, eles são milhões e daqui partem comboios para Pequim, Vladivostok com travessia da Sibéria em sete dias e para onde o teu imaginário te levar.
E acordámos no Báltico do frio cortante e do céu azul.





Sem comentários:

Enviar um comentário