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domingo, 8 de abril de 2018

O Homem que nasceu em Moscovo





- Pretendem um táxi?
O rececionista do 38, ainda simulou um trejeito, esticou o indicador prensado entre duas talas para o ar e para o mapa dos transportes “Podem tomar um transporte público, é muito prático e, mesmo não havendo metro até Tegel, existem autocarros e não há forma de enganar”.
Já tinha insistido, de forma educada, em fazer a conta “porque amanhã toda a gente vai querer pagar”, já tinha pedido autorização que pagássemos os extras em dinheiro, afinal de contas são apenas pequenos montantes ou apenas especialização de negócios ou talvez remuneração variável.
Educado, mas insistente, o rececionista do 38, tinha vontade de combater o tédio das horas mortas com trabalho útil e o gelo da noite com companhia, mesmo que apenas conversa de ocasião.
“Quando cheguei a Berlim, logo me avisaram que nesta cidade havia verão e não verão. Hoje, zero graus, para a semana dezoito, como vê não há primaveras em Berlim”.
Sorri, esta é uma temperatura de início de primavera, mas imaginei que os climas mediterrânicos não fossem a especialidade do rececionista do 38.
Mas enganei-me. Identificou-me pelo nome (e principalmente pelo apelido) de check-out, sem hesitações, “de Portugal” e desfez-se em sentimentos de pertença sobre um povo que sabia receber, irradiava simpatia e vivia num país lindo chamado Algarve.
“Nenhuma semelhança com os espanhóis, também conheço o sul de Espanha e eles não gostam de turistas”
Com o nome de Irina ainda na mente desde a hora do pequeno almoço, imaginei que o porteiro da noite fosse russo, afinal de contas o homem falava que cá tinha chegado, de algum lado, pressuponho.
Pareceu surpreendido por eu perguntar de onde era, “Sou berlinense, como o meu pai, o meu avô e o meu bisavô. Só eu é que nasci em Moscovo, mas apenas por acaso, ou talvez não, o meu pai tinha ido estudar para Moscovo”.
Ao homem com cerca de cinquenta, também lhe disse que me fascinava Berlim, era a quarta vez que vinha, “A primeira em 1985”
“West Berlin?”
Tão evidente a pergunta quanto a resposta, com cinquenta anos ainda não restam dúvidas da origem da história e de que tinha havido duas centralidades e eu concluí que o pai de homem da noite tinha, definitivamente, pertencido à outra centralidade.
Hoje as diferenças são mais subtis, por vezes até propositadamente escondidas, por isso o rosto simpático que era berlinense, mas tinha nascido na União Soviética, eventualmente um filho do regime da iniciativa coletiva, emendou a sugestão, perante a sua suspeita de que não me teria agradado a sua ideia de viagem nos transportes públicos
“Realmente são apenas mais dez ou quinze euros”, numa tradução prosaica de “os tempos mudaram”
O triunfo do capitalismo não tocou da mesma forma ambas as centralidades, e não terá sido um desfecho óbvio para muita gente.
É curioso como o tempo torna a história menos óbvia que o presente, e tende a fazer realçar as subtilezas de entre as verdades absolutas.
Mitte, Orianienburger Strasse, no coração do Leste.



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