Pesquisar neste blogue

sábado, 14 de março de 2020

SILK ROAD #16 – E, de repente, (re)nasceu Timur


Sentados nas escadarias do Hotel Uzbequistão, encostamo-nos à última pérola da utopia, construída com um realismo exacerbado pelo desejo de afirmação de uma verdade absoluta, forrada por milhares de quadrados esculpidos na fachada, todos iguais, como se uma nação, um sonho e uma hipérbole ganhassem força pela repetição, pelas ilusões de ótica, pelo número de andares e pela forma de abraço com a qual o arranha céus envolve a praça, a história recente, os pavilhões de verão da aristocracia russa, as avenidas e os prédios austeros construídos pelos que, através de uma revolução, herdaram um império na Ásia Central.
Do alto das escadarias do Hotel Uzbequistão, posamos para os padrões de beleza uzbeque e,  enquanto elas se adaptam aos mecanismos e ao telemóvel eleito pela posteridade, nos segundos de momento suspenso, nós passámos a acreditar no antropólogo famoso que afirmou um dia que a chave estaria na mestiçagem, afinal de contas se os povos não conseguem viver em paz na diferença, então a solução pode ser misturá-los, e criar uma raça mestiça nova, com novos valores comuns.
Diante nós, no fundo das escadas, as três jovens transeuntes de sorrisos transparentes, espalham alegria e beleza exótica pelas escadas acima, alheias ao movimento motorizado dos jovens de uma estirpe de mestiçagem desconfiada que as rondavam.
Elas, também indiferentes a Amir Timur, o último dos residentes da praça, imponente e de dimensões generosas, de cima do pedestal no geométrico centro da praça redonda, ou elevado a herói no novo bloco de vidro que preserva as memórias do novo fundador, provavelmente com os efeitos especiais da multimédia, o edifício que completa a história da arquitetura e a últimas das esquinas da praça de dimensões imperiais
Nós, pelo menos alguns, gastámos os segundos de espera ansiosa pela fotografia de grupo a pensar no diário de 1865, do ministro do interior do czar, Pyota Valuev, que escrevia que ninguém (entre os conquistadores) sabia bem qual teria sido o objetivo da conquista de Tasckent pelo exército russo, mas existia algo de erótico em “tudo o que estamos a fazer nas longínquas fronteiras do nosso império”  
Outros, os mais letrados, lembraram-se de Dostoievski que, em tempos, terá dito que a Rússia devia, não apenas comprometer-se com o Leste, mas abraçá-lo.
E rimo-nos todos muito, quando nos despedimos da nova e mestiça juventude uzbeque.
Na noite anterior, abafada pelo verão interior da maior cidade da Ásia Central, não havia referências de grandiosidade dos grandes imperadores tártaros e, por estranho que nos tenha parecido, sentimos o calor cosmopolita com uma excitação quase juvenil, que entrava pelas janelas abertas do táxi sem marca e sem idade que se desentorpecia, a alta velocidade, pelas largas avenidas da cidade, contornando as geometrias em forma de praças e enfrentando as formas construtivistas em sequência. 
As origens prosaicas desta antiga aldeia que cresceu na fronteira entre os mundos nómada e sedentário e que viveu na obscuridade durante oito séculos, até à chegada dos czares, não sobrevivem à falta de memória, porque a cidade viveu sempre na sombra de Samarcanda.
Com pena de que Babur, o neto de Timur, não tivesse emigrado precocemente para as criações de Dinastia Mughal, tão, tão longe, do seu vale de fergana.
Se Babur não tivesse sido expulso de Samarcanda pela descontrolada herança de Timur, poderíamos ter vindo a Tasckent para visitar o Taj Mahal.
Mas foi, e carregou com ele o esplendor dos grandes imperadores, deixando aos sucessores de Timur, o papel secundário de criador de cavalos destinados ao luxo dos grandes impérios do Oriente.
E, nas entranhas da maior cidade da Ásia Central, não ressoam os ecos de uma História longínqua.
As ambições desmedidas de Tasckent, tal como os seus feitos e desgraças, têm origem nas suas ambições imperiais, um local onde os russos  se sentiam senhores e os uzbeques, meros súbditos ou servos, conforme o seu grau de colaboracionismo.
Tasckent é, pois, uma criação dos czares quando descobriram que os seus distantes e inóspitos territórios de fronteira eram ricos em ouro, madeira, peles e imensos espaços de cultivo e quando a cidade foi escolhida pela expansão ferroviária que fez renascer as ambições da rota da seda, a partir de S. Petersburgo.
Uma herança muito apreciada pelos sovietes, apesar de muito criticada por Marx, em meados do século dezanove.
Mas a visão dominante da quarta maior cidade do império Soviético é composta por avenidas a rasgar os destroços do grande terramoto de 1966 e os horizontes, um metropolitano construído à imagem e com a grandeza da capital, e a sua herança de edifícios de arquitetura construtivista, porque a maior cidade da Ásia Central tinha de ser soviética.
Nos seus feitos, como nas suas desgraças, a cidade merecia um terramoto para ser devidamente perfilhada pelas grandes obras do regime e no metropolitano o tempo parece ter parado e o espaço transportado para Moscovo, e até as funcionárias fardadas eram de pele clara e porte eslavo, um mundo subterrâneo que destoava da mestiçagem da superfície, dos mercados com reminiscências nómadas e fé muçulmana, e eu juraria que as guardas da estação só falavam russo.
Mas, cercada pelas realizações imperiais e pelas obras de regime, ainda vive o bairro muçulmano de casas baixas e pátios interiores, miúdos que brincam nas ruas um povo de tez morena, vestes compridas e uma curiosidade por quem chega e donde nós chegamos.
O bairro muçulmano fecha às onze horas, mas as mulheres recolhem-se enquanto os homens veem na televisão o europeu de futebol, e nos perguntam, sem timidez, se gostamos do Uzbequistão, com a convicção absoluta de que só havia uma resposta possível.
No último reduto dos povos nativos, poucos se parecem importar com a forma como o novo poder parece lidar com a desorientação da queda recente do último dos impérios, que os levou a substituir os pais do socialismo, dos seus pedestais, por um novo pai e herói da nação uzbeque, muito antes de alguém ter imaginado que ela iria, um dia, existir.
Pois, a criação de um novo herói nacional para justificar a existência da nação Uzbeque foi tão precipitada que não tiveram o cuidado de verificar o seu passado
Timerlane para nós, Amir Timur para eles e os seus dezassete milhões de mortos não são, provavelmente, a melhor das referências para uma nova nação.
Pensámos nós, pelo menos antes de chegar a Samarcanda.






Sem comentários:

Enviar um comentário