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quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

O vôo da noite TP 1684


A capa briha na penumbra das apagadas luzes de cabine, como uma lâmpada de criatividade em histórias espalhadas pelo mundo, atenuando o ambiente soturno e bolorento que persiste na cabine.
Um Aladino desperta sempre a atenção, sobretudo abandonado à sua sorte no assento côncavo de uma aeronave, a mais louca máquina voadora do mundo.
O vôo nocturno descola da ilha ensopada de chuva e de luzes...as ilhas já não são ilhas no sentido lato e inóspito do termo
Sepúlveda fora do território panfletário esbanja memórias sem geografia definida, facto estranho para quem nunca se exilou, tão estranhamente vulgar quando lido do céu, uma ponte aérea tão curiosamente comum e intemporal entre a America do Sul e a Europa, refúgio envelhecido de todos os apátridas.
E memórias são de uma criatividade e de um encanto que o autor muitas vezes esconde por detrás de palavras de revolução perdida.
Encontrou-as em correntes de escrita fascinante, sem que lugar algum o segure em mais do que um capítulo seguido
Mas numa noite de Inverno sobre o Atlântico Norte, são as histórias de um exilado na Europa do frio e da chuva, que nos parecem familiares.
" Não me incomoda a chuva, é o que me agrada em Hamburgo..."- o autor em O anjo vingador
" Gostava da chuva, e aqui chovia que se fartava!"
As vantagens de um exilado permanente, convulsivo e rebelde é que nos faz levitar, sem ordem nem prioridade, por universos persistentemente contraditórios.
Mas numa noite de Inverno no vol de nuit sobre o Atlântico, são as interjeições latinas com a Alemanha do Norte, que me adormecem o corpo e me despertam as memórias.

Frankfurt ,20 Janeiro 2003

Spatten era uma palavra inimaginável na Alemanha que eu conheci, há vinte anos atrás.
Mas hoje esta viagem aos mais profundos e irrecuperáveis sentimentos e memórias provocou um temporal de ténues recordações dos Verões de emoções fortes em Frankfurt , 1983 e já voaram vinte anos, de repente uma angustia tão intensa que dói, como se a pele tivesse encarquilhado em segundos tantas décadas e a ansiedade se apoderasse do vazio, do despertar de locais calcorreados com pés e mentes vagabundas, já sem retorno, outro flash que nos acorda para a mortalidade [ a culpa é da memória ], num súbito pavor, gelado e ventoso numa noite de Inverno na estação de Manheim, 2003 e vinte anos é uma eternidade, apenas a rasgos, porventura lampejos, anestesiados pelos olhares profundos e penetrantes das fêmeas normandas, ao pequeno almoço de numa sala real salpicada de tristes e solitárias viagens de trabalho no feminino, os sorrisos com algum deleite, nada camuflado, algures num semáforo [ sempre verde], numa janela que se esgota com a partida do trem [ e fica o soslaio triste, um adeus sem som] , sempre e ainda sem vergonha da sedução....e de repente o filme rebobinou-se sem esforço, voltei a ter vinte anos [ ou elas já tem quarenta?].
E quando me começo a convencer que afinal nada mudou na Alemanha das nossas recordações [não reavivemos malditas datas],lagoas em Mainz, corpos e copos, lindas e proveitosas divagações em torno de uma garrafa de vinho, que muito provavelmente nunca deixei de ter vinte anos... me apercebo que, neste fim de tarde de segunda feira Invernal, o comboio chegou atrasado a Stuttgart, partiu mais de uma dezena de minutos da gare do já desespero, apeou-se num indesculpável atraso que desfez a correspondência porque gastou os três minutos de tolerância que a civilização lhe concedeu, mas insistente na miopia que lhes descontrolou o sincronismo com um passado que se move e transforma depressa demais, mantem o relógio electronico do expresso atrasado para se manter a tempo, mas a correspondência não espera [ ninguém espera] e o atraso torna-se também ele sem retorno, apenas entornado por uma resignada cerveja, e agora esperemos...mais cinco minutos de atraso no clone que vem do Sul, e os passageiros já resmungam com tons de latino e, finalmente Frankfurt sem ordem nem perdão, a memória das torres da finança internacional, os 2 CV da irreverência apaixonada, uma inexplicável inversão de papéis, com uma indisfarçável sensação de familiaridade mas também perda...três horas depois, duas de atraso [ ou um sonho acordado?] que pouco me incomoda, afogado naquela cerveja em cima de um balcão que me recordo tão bem, à chegada a Frankfurt às 7 da manhã de um Agosto de 1985, completamente perdidos, sem pressa de partir o muro em Berlin, recordo-me tão bem [será que ainda lá está? Não, certamente não é a mesma!]
Spatten, funfe minuten! Afinal tudo mudou na Alemanha incontornável nas nossas recordações e sobretudo, sobressaltos !


Quando o trem de aterragem baixou e o mar desapareceu debaixo dos nossos pés (meus e de Sepulveda) as memórias tornaram-se mais difusas - não é possível ter memórias com os pés no chão e em terra firme - afinal eram histórias breves, sem que nos fosse possível afeiçoar aos personagens, fortes, rudes e genericamente audazes!
Terá sido um sonho?