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quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Flashback #3 - Secando as roupas da velha Europa

 


Na avenida de Mayo, uma multidão assiste à festa da Calábria, com um palco cheio de crianças vestidas de trajes regionais que dançavam sons longínquos de distância, mas próximos de cultura, e a juventude no palco, mais pelo movimento e pela cor, do que através da música, procurava manter acesa a chama da nostalgia e o velhote sorria, como se nos quisesse explicar a razão da sua alegria, “A última geração de migrantes está a morrer. A nostalgia poderá então deixar de fazer parte da memória coletiva do povo” e hoje, como no passado, o sol da Argentina estava secando as roupas da velha Europa.
Uns quarteirões a ocidente, ainda na Avenida de Mayo, para lá da 9 de Julho, a avenida mais larga do mundo, tão larga que torna, por vezes, difícil a perceção da sua própria origem, a independência do país, instalou-se o Palácio Barolo, o primeiro arranha céus da américa latina, um sonho de um maçon italiano que acreditava que Buenos Aires era o último refúgio da cultura Ocidental, diante a barbárie da guerra na Europa que, segundo ele, conduziria ao extermínio da civilização humanista.
E por isso construiu uma homenagem de betão e vidro à Divina Comédia, investiu uma fortuna para a construir em tempo recorde, porque acreditava que a Europa iria soçobrar em breve, guardou três andares para ele viver, mas morreu antes do edifício estar pronto e antes da Europa sucumbir às trevas.
Na rua Hipolito Yrigoyen, não tão longe assim da Avenida de Mayo, escondido nas traseiras do Congresso da Nação Argentina vive o teatro Empire, uma alternativa teatral que, na segunda-feira à noite apresenta ao público sentado em mesas à volta de um palco que não se vê, um espetáculo de cabaret, que estende os braços à Europa, sobretudo no infortúnio e nos períodos de desorientação do velho continente.
Demencial (ligeiramente) segundo a apresentação, tendo como pano de fundo a ascensão do nazismo na Europa e a década infame na Argentina
Político, interativo com Brecht
Psicológico, a cobardia frente à ditadura do ódio, da opressão e do medo
Segundo o protagonista, mais vale um cobarde vivo que um herói morto, recordando os lugares tenentes, tão cruéis para os subordinados como submissos para os seus líderes.
Mas o protagonista vilão não é, afinal, um vilão é apenas um produto das circunstâncias e, no final, enfrenta o lugar tenente e torna-se num herói vivo.
Neste espaço sem geografia precisa, desfilam as músicas de Gardel e os poemas de Brecht como se o Oceano fosse apenas uma ponte entre os desenganos da alma argentina e as desgraças da velha Europa “Mais tarde, o sol estava secando as roupas da velha Europa” 
No final da peça o bem e a liberdade triunfa sobre o terror, o lugar tenente é morto no cabaret por uma horda de oprimidos e a moral explicita dos autores pretende simbolizar a esperança de que, no fim, e apesar dos momentos de insana loucura que assolam a Humanidade, de tempos a tempos, num qualquer final (ou apenas mais um intervalo) o bem sempre triunfa.
A peça só tem um Ato e portanto, neste palco inclusivo, a eternidade é apenas uma metáfora.
Não foi ainda esta noite que a última geração de imigrantes morreu.



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