Enquanto esperava
pacientemente pelos atrasos do voo da noite, L. observava o puto que dormia em
cima de uma mala, aparentemente abandonada, como se não houvesse pais, donos ou
um conceito equivalente de núcleo familiar. Mas o puto acordara, e agora
perdido no sonho ou da família, choramingava sobre a grande mala que antes o
acolhera.
Transeuntes preocupados
de volta da criança desorientada, interrogavam-se sobre a solidão e o abandono,
as seguranças de luva branca e feições carregadas, demonstravam o seu lado
maternal, agitavam os olhos nervosos à procura e, vindo de sabe-se lá donde
aparece o pai da criança que a embrulha nos braços, como ramos de uma árvore
pejada de raízes. Mas a frieza da mestiça de feições carregadas só entregou a
criança depois de identificado o alegado indigente.
L. sorriu com este
final feliz e embrenhou-se na leitura, a lâmpada de Aladino de Luís Sepúlveda,
como antes e durante, Borges, Garcia Marques e Vargas Llosa, companheiros na
sua solitária viagem.
A capa
brilhava agora na penumbra das apagadas luzes de cabine, como uma lâmpada de
criatividade em histórias espalhadas pelo mundo, atenuando o ambiente soturno e
bolorento que persistia neste interlúdio entre a terra e o espaço exterior.
Um Aladino desperta sempre a atenção, sobretudo abandonado à sua sorte no assento côncavo de uma aeronave, a mais louca máquina voadora do mundo.
Um Aladino desperta sempre a atenção, sobretudo abandonado à sua sorte no assento côncavo de uma aeronave, a mais louca máquina voadora do mundo.
O voo
noturno descola do istmo ensopado de chuva e de luzes e L. voltava a
embrenhar-se em Sepúlveda que, fora do território panfletário, esbanja memórias
sem geografia definida, facto estranho para quem nunca se exilou, tão
estranhamente vulgar quando lido do céu, uma ponte aérea tão curiosamente comum
e intemporal entre a América do Sul e a Europa, refúgio envelhecido de todos os
apátridas.
E memórias
são de uma criatividade e de um encanto que o autor muitas vezes esconde por
detrás de palavras de revolução perdida.
Mas numa
noite de Inverno sobre o Atlântico Sul, são as histórias de um exilado na
Europa do frio e da chuva, que pareciam familiares a L. e são as interjeições latinas com a Alemanha
do Norte, que adormecem o corpo de L. e voltam a despertar as suas memórias.
Eram as noites que marcavam
o seu ritmo afetivo e a sua tolerância à distância que, à medida que o tempo
escorria, deixava de ser apenas uma distância física e se transformava no
reinventar de uma nova existência, como se tivesse reencarnado na essência de
um outro ser.
Deixara de haver
rotinas para L., e os finais de dia alternavam entre a profunda e temível
solidão e a euforia dos encontros fortuitos nos bares de todas as cidades, nas
sociedades de elite ou nos hotéis de luxo que a nova profissão lhe
proporcionava.
Jamais L. se
imaginaria um ser de sociabilidade tão fácil e de pendor tão universal como nas
terras de um exílio tão dourado e compensador.
Chegava a sentir-se um
mercenário do seu interior, agora que decidira deixar de contemplar a vida dos
outros e se assumia, qual jovem rebelde e de natureza errante, como
participante desta nova existência reincarnada.
Nos compassos de
solidão, debruçava-se no skype, cada vez mais intermitente e ausente, e
constatava que os filhos reinventavam a vida na sua ausência, com uma saudade
cada vez mais difusa e uma necessidade cada vez menos premente.
É diferente ser exilado fora de tempo.
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