Não fosse o solavanco
inesperado numa cratera camuflada por um gigantesco lago artificial feito da chuva
diluviana, e o miúdo jogaria futebol no espelho retrovisor de onde espreitava
um bigode moreno, desconfiado de tanta reflexão absurda, saltaria do quintal
pela janela da frente no lugar do morto, pedalaria campos fora a uma velocidade
que os pesados ciclistas de rua, na imagem de fundo, não ousariam seguir.
Convencido, o puto, de
que aquele era o mundo dele, uma província da qual não haveria História de
Portugal que o colhesse. Tinha impregnada a noção de uma Pátria a preto e
branco, modesta mas livre para os putos que se enchiam de pó nos infindáveis
estradões de terra solta.
O bigode moreno do
banco da frente balbuciou um “Perdão!” e o L. empertigou-se no banco de trás, no
seu orgulho e na carcaça de homem feito, compondo-se de uma breve, mas sentida,
emoção.
A chuva convenceu-o de
que não estava em Lima, a terra de nevoeiro opressivo, mas que não aceita chuva
por capricho da natureza, este tinha sido o seu poiso de semanas passadas,
Santiago também não, porque aqui cheirava a Pacífico e as estradas tinham
buracos.
Panamá e decidiu bem.
Ao longe levitavam as luzes dos monolíticos cargueiros que esperavam a vez para
entrar no canal, mas o táxi não se comoveu e, subitamente curvou para Leste,
deixando o canal, os cargueiros e os milhares de marinheiros impacientes pelas
costas…
A literatura do
policial Carré não servira afinal de preparação, na sua primeira visita a este
local, e nas outras que se seguiram, sempre como um entreposto, um mero poiso,
umas horas de espera sem recordações nem memórias que valham sequer a fama e o
proveito que resultam das suas ancas elegantes e curvas generosas, mas as
memórias exóticas e românticas nada tinham a ver com este lugar, perdido entre
a espelhada downtown e uma imensa e precária periferia pardacenta de
predominância em latão e zinco.
Desejou muito, e de
repente, voltar para o confortável e aquecido mundo das memórias.
Um exilado, compulsivo
e rebelde levita permanentemente, sem ordem nem prioridade, por universos
persistentemente contraditórios, mas tem sempre um refúgio sentimental para
onde se recolhe, sempre que o incómodo ameaça torna-se insuportável.
Mas, assim tão de
repente, não conseguiu porque a escuridão era agora total, e tal como o
silêncio também a falta de luz impedia que película se projetasse nos reflexos
sua memória.
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