Não há mal nenhum no passado.
Nem sequer em viver apenas das
memórias do passado
Mas R (um nome absolutamente
português) não aceita o presente e esse facto transforma-o num homem azedo.
Estranho, especialmente quando o
passado se sente nos pormenores do presente, uma espécie de vivência lânguida
que subsiste bem para além da velha Goa.
Especialmente quando o passado,
como o mar e o clima, temperou um povo com mais sal e menos pimenta os
autóctones continentais.
E o mais bizarro deste pequeno
homem é ele acreditar que nos encanta com as réplicas inexistentes de um
Portugal que, também ele, já não existe.
O que encanta na velha Goa e na
nova Pangim é a forma como as culturas se fundiram de uma forma tão sanguínea
que ninguém perde tempo em lembrar o passado, porque este foi absorvido no novo
quotidiano de uma forma singular.
E só R reclama ruidosamente com
os indianos, provavelmente goeses de apelido português, católicos de religião
confessa e de um absoluto desconhecimento da nossa língua, por não tirarem os
chapéus à entrada das igrejas, por substituírem os ramos de flores por coroas
na adoração aos santos, por não conhecerem os símbolos da história de Portugal,
por se mostrarem indolentes em lugar de subservientes.
Como afirmava o gestor indiano de
uma empresa farmacêutica, à saída do avião de Bombaim, o pessoal aqui em Goa
não gosta muito de trabalhar.
Suave indolência latina,
impregnada na pele escura dos habitantes de Goa.
Uma indolência que atenua uma
sociedade indiana muito estratificada que, frequentemente se suporta em
relações de subserviência entre classes.
Quando mostrámos o cartão do
gestor de Bombaim, um homem que só falava de futuro, o Ex farmacêutico R,
ultrapassado pela origem e pela capacidade de assimilação, esboçou um esgar de
desprezo “é um indiano de Bombaim”, como se não fosse relevante conhecê-lo,
sequer.
E tudo aconteceu entre um caldo
verde – muito aceitável aliás – e um peixe frito, num restaurante que servia
comida vagamente portuguesa, numa sala decorada com mobiliário indo-português,
povoada de estátuas de elefantes, bebendo cerveja indiana no coração do bairro
das Fontainhas.
O motorista Gomes, que esboçou um
sorriso complacente quando se apresentou, um goês de ascendência indiana e
absoluto desconhecimento de Camões e da sua língua, aceitava os gritos de R, as
esperas pelos nossos intermináveis almoços e jantares, as nossas incríveis
horas de acordar, os locais ardilosos para onde os levávamos, com a mesma
paciência dos seus colegas hindus do continente, mas usava um relógio de marca
e dele desprendia-se uma ligeira soberba, uma altivez apenas reconhecida por
latinos a latinos.
E descontada a leveza própria de
um território com metade da população de Varanasi, é a herança de Albuquerque e
das famílias Bhrahmin convertidas a um catolicismo que não renega os templos
hindus de família, que transparece da paisagem.
E por isso mesmo, as catedrais despovoadas
da Velha Goa convivem sem mágoa com o desgoverno autorizado do mercado de
Anjuna, e os extensos arrozais da Goa do sul com as festas ao pôr-do-sol dos
areais da Goa do Norte, pejados de multiculturalismo, sons cool, hindi e metal
e de olhares em levitação acelerada.
Nada que incomodasse o velho reformado
goês que passeava tranquilidade entre as igrejas e as portas da Velha Goa,
recordando aos netos portugueses os momentos exuberantes de fé do Santo
Francisco, e se intrometia – num português perfeito - na nossa curiosidade,
aceitando sem pudor a sua condição de magistrado de um território indiano.
Ou o português da Amora, que
festejava os oitenta e cinco anos da sua avó goesa, rodeado de uma vintena de
familiares de origens distantes e indeterminadas, cujo único múltiplo comum era
a avó e a língua inglesa.
Nem o mercado de Pangim,
construído numa arquitetura de Estado Novo e bancas da fruta, que transborda
para fora dos seus limites em barracas de rua e panos garridos, como uma
afirmação hindu da necessidade de manter o caos, para continuar a viver.
E o motorista Gomes, que já
conhece todos os santuários, igrejas e seminários católicos, vai abanando a
cabeça, da forma que um ocidental percebe, entrega-nos na paz interior do
seminário de Rachol, perde-se no caminho para a casa Figueiredo, basicamente porque
não consegue soletrar a reta final da palavra, entrega-nos o autocarro nas mãos
para orientar o trânsito caótico à saída do pôr-do-sol de Anjuna, conduz-nos ao
forte dos Reis Magos e aventa a possibilidade de haver transporte de cá de
baixo lá para cima, encolhendo os ombros e comunicando-nos que ali já não vai
há mais de seis meses, como que estranhando porque, raio, é que estes
portugueses queriam tanto visitar um local que, há cinquenta anos, os mesmos
portugueses tinham abandonado em estado de profunda ruína.
Algo aliás profusamente lembrado
pelo impecável restauro, iniciado pelo governo da república indiana em 1961, em
prol da preservação da História.
Embrulha!
E a imponência restaurada é tão
notória, que deixou de ter importância a dúvida histórica – e a confusão de R –
se, afinal Vasco da Gama esteve ou não no território.
E, com os pés na areia, não
conseguia entender porque é que, ao ritmo de cada pequena ondinha de metro e
meio se ouvia um eco gritado que ressoava, na horizontal, ao longo de toda a
praia de Baga.
Mergulhado na água tépida do
Indico, os gritos eram acompanhados de braços ao alto e de risos estridentes,
temperados por um inglês com sotaque e de tez morena, “ I can’t swim, you will save me”
Sentados na esplanada, as
estrelas de cinema de Bombaim despejavam barris de cerveja, as mulheres continentais
fumavam sem pudor e desfrutavam de fatos de banho decotados.
Afinal de contas, o mar, o calor
e as heranças devem ser desfrutados por todos.
Como a manhã em que me perdi de
propósito nas ruas de Pangim, e dei por mim a fotografar riquexós como se
fossem táxis, e anúncios de filmes indianos pendurados sobre arquitetura
colonial, tão familiar me pareciam as bordas dos passeios pintados de vermelho
e branco.
Como o jantar no hotel Mandovil.
Oito e meia da noite,
pontualidade para o jantar no hotel Mandovi.
Segundo R, um clássico de bem
comer goesa e portuguesa (é também interessante a associação entre estes dois
símbolos)
A sala chamava-se alcova, as
escadarias tinham um leve trago art Deco retardado e, ao entrarmos na sala,
deparávamos com uma decoração estilo restaurante chinês, um empregado com
acentuado odor a suor, de bigode farfalhudo, farda rosa e gravata transbordante,
que nos lembrava os empregados do café central, por volta dos anos cinquenta e,
ao fundo, por detrás de um balcão de bar, forrado de papel de parede, um jovem
indiano aparentado com o Speddy Gonzalez e uma viola maior que o seu tronco, esbracejava
entusiasmado todos os êxitos dos anos cinquenta e sessenta, acenando muito
quando lhe batíamos palmas, e cantando sempre do fundo da sua alma,
especialmente o Let it be.
Nesse momento lembrei-me da
história do R quando afirmou convictamente que, após a segunda reconquista de
Goa pelos portugueses, estes lançaram uns quantos crocodilos para o rio
Mandovil, para protegerem a cidade de Goa de potenciais invasores.
E ainda hoje existem, não aqui,
mas lá mais para cima.
Ai Speddy, que sorte a tua!
Sem comentários:
Enviar um comentário