Quantas vezes se
debruçara sobre os balcões de check-in, era uma equação de variáveis
indefinidas, perdidas nos horários trocados de uma massa humana que
freneticamente se deslocava permanentemente de um lugar para outro, em
complicadas manobras de segurança, bagagem, vistos e passaportes, novos tempos
e novos hábitos de latitudes longínquas a que L. já se tinha adaptado
Incomodavam-lhe mesmo
as facilidades aduaneiras europeias quando, cada vez mais esporadicamente,
regressava ao velho continente.
E, enquanto abria mais
uma vez a sua mala, sem se importar nem questionar com a sua utilidade,
constatava divertido que, por estas bandas, as revistas e os controlos eram
sempre desempenhados por mestiços profundos de feições carregadas e olhar frio
e cortante, mas que as suas mãos enluvadas apenas acariciavam a roupa, sem
entrar em detalhes, esperançados de nada de suspeito encontrar.
Mais um raio X na mala
de um caixeiro-viajante da era moderna, adormeceu L. da atmosfera pesada,
noturna e de luzes de néon amareladas de tão gastas, da área de embarque e
transportou-o para a viagem de partida para as Américas.
Ou seria a de
regresso, considerando as circunstâncias e a sua fulgurante ascensão na nova
vida de (i) emigrante.
Corria atrás do
Ocidente numa tarde que não tinha fim. Deixara a sua vida por resolver e, da
cabine da aeronave lotada, olhava a profundidade temerária que ressaltava a
turbulência em imagens de abismo.
Não entendia na altura
se era o abismo do profundo mar azul e do deserto humano que se espelhava nos
areais do Sahara e de Cabo Verde, ou apenas uma vida que se desmoronava num
exílio fora de época.
Sentia-se apenas
confortado pelo facto do Sol ser amigo, porque sobrevoa sempre as nuvens e por
não vislumbrar fenómenos do fim do mundo como árvores plantadas no céu.
Imaginava Buenos
Aires, como
serão os cheiros da manhã nos mercados, nas cervejarias, será verdade o ritual
do café sem pressas, como se fizesse parte da sua função no mundo observar os
outros, imaginar as vidas de quem se atreve a passar, não há nenhum impedimento
em construirmos histórias ao sabor lento do café e tinha saudades de Lisboa,
como se o oceano me estivesse a esticar de forma intolerável entre dois mundos.
A realidade a dez mil
metros de altitude, despertava-o para uma aula de ritual dos porteños e, como
se fosse natural recomeçar a andar, aprendia como imaginar a segunda vida dos
que o tentam lixar a vida
“Tal como eles não
imaginam a minha segunda vida!”
Procurava entre a
turbulência, as subidas e descidas e o apertar os cintos não me enredar nas
nuvens, regressar à construção do meu mito sobre o novo mundo, calibrar a nossa
expectativa, porteños de beleza impura que envolve as tradições submetidas ao
Tango, os cheiros e as cores, as referências obrigatórias ao início do século
XX, cafés e tertúlias, a intelectualidade e a ditadura, Borges e Gardel, o Déco
que impõe ainda hoje o ritmo da modernidade
E as saudades das suas
referências de passado em glória e tragédia nacional, um fado que nunca ouvia,
pareciam-lhe agora intoleráveis enquanto sobrevoava, em descida prolongada, a
colónia de Sacramento.
21:07, a tarde esgotou-se finalmente no início de noite e sentiu o céu
vermelhão escuro na cauda do Airbus; Atravessara meio mundo sem mudar de língua
e, no aterrar da segunda vida (ou seria o descolar da segunda e aterrar da
primeira?), e assegurava que a visão argentina do universo hispânico, seria uma
versão claramente melhorada do original.
Assim acreditava
porque tinha atravessado o mundo nessa esperança
E. esperava-o na
cidade do Tango….
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