Há três anos que Pedro vagueava de corpo e
alma nesta cidade que se acomoda aos espíritos vadios, aos seres desalmados,
acolhe todos com o mesmo desprezo, sem vontade mas com a condescendência de uma
cultura superior e de uma monumentalidade boémia que, por definição, pertence
ao mundo!
Chegara a Austerlitz como um intruso, numa
noite de Verão tão chuvosa que o arrastou para uma violenta tristeza que
pingava do oleado que o cobria e lhe vincava as feições assombradas de um ser
que amedrontava os vagabundos de Paris, de tão errante, de tão desconcertante
ele próprio se sentia!À porta da Gare, desolado pela tempestade que o recebia, investira contra a cidade revolta na última das suas mirabolantes partidas, que se haviam tornado progressivamente compulsivas que apenas podia significar uma incontida vontade de estar só, longe e sempre a partir, sempre o novo, o desconfortável o não familiar!
Mas em nenhuma destas fugas havia causas nobres que justificassem este exílio, (curioso que fosse uma misteriosa e bizarra voz que lhe lembrasse este simples facto da vida) e ele tinha a certeza de que, mais uma vez, se iria embrulhar num jogo de retórica inconsequente, com a desvantagem de ser apenas com uma voz!
Estendeu as pernas sobre a mesa (a única mesa do pequeno apartamento com vista para as costas da cidade, tão polivalente quanto os seus ideais de vida), procurou embalagem no balancear da improvisada poltrona e conformou-se sem convicção e com ondas de auto comiseração:
- Presumo que lhe sou de alguma forma (e acaso) familiar, ou estamos apenas destinados a nos encontrar na esquina, entre duas linhas trocadas? – Era o melhor que conseguia responder
- Eu perscruto vestígios de desencanto na voz, demasiada melancolia e descrença, tudo tão excessivo que fere, tantos números acima da idade que vestes, provavelmente não mais de vinte e dois…
-…vinte e três!
- Uma voz demasiado quente para tanto azedume! – A voz insistia
- É o nevoeiro que não nos permite vislumbrar o luar, a luz esmorecida de uma liberdade sem rosto….
- Sem raízes e sem conforto!
- Eu diria que lês as cartas como profissão – Pedro esboçou um sorriso que julgava imperceptível, sinal apenas de mais um período consumido por entre vielas e retratos de um bairro adormecido.
- Afinal o nosso herói também sorri, não apenas ironia…
- É de surpresa! O que fazes por aí, do teu lado da linha?
- Procuro almas gémeas, não leio cartas, pressinto que és um ser fascinante de incertezas, um sonhador que canta baladas de uma nostalgia linda e insensata e que te moves de uma forma encantadoramente perdida por esta cidade em roupas que te afogam, sempre escuras e tão coçadas que até dói!
- Ah, afinal conhecemo-nos…
- Eu conheço-te – corrigiu a voz – Julgo conhecer-te por dentro da tua silhueta tão opaca, mas com tanto potencial!
As referências da voz indiciavam que o encontro era planeado, e que a sua ocasional, mas persistente carreira de trovador à hora, no pequeno bar da Rua das Silhuetas, tinha pelo menos uma seguidora que não se identificava por detrás dos focos, na escuridão dos vultos envoltos no fumo e nos vapores do álcool noctívago.
Agora tinha a certeza de se tratar da versão feminina do anjo de rosto humano e asas brancas que sobrevoava a urbe…sim Paris fêmea, Berlim macho e sim os anjos têm definitivamente sexo!
E Pedro não pôde deixar de sorrir novamente, corando de desconforto perante uma evidência a que ele incapaz de fugir: vestir-se não era decididamente o seu forte e raramente acertava com o número de roupa adequada aos seus fugazes 60 quilos de peso!
E a conversa criou raízes, sem tema mas com destinatários precisos, a voz não identificada, tudo sentidos e descoberta, vaga como se querem as leves e inconsequentes seduções, rostos que se construíam sem pressa, com súbitos avanços e longos recuos, onde apenas as referências e as identificações eram omissas, por cautela ou sem razão.
E Pedro perguntou-lhe se conhecia as Asas do Desejo de Wim Wenders e ela não lhe respondeu.
Os anjos têm sexo, mas não argumentam.
E já Paris renascia da noite num amanhecer incerto, frio e nebuloso, quando ambos experimentaram a despedida, tão evidente se tornara que este era apenas o primeiro episódio de uma novela sem datas precisas, impulso e decisão dela, submissão, interrogação e fascínio dele, até Pedro começava a acreditar que poderiam existir almas gémeas, como se as almas pudessem ter corpo, “intangíveis como a poeira, sólidas como as pedras da calçada”, risos incólumes pela distância dos olhares incómodos, vozes que se alongam e se protegem por detrás da malícia e da timidez, também elas se partilham, se encontram e se tropeçam.
- Paira sobre as minhas dúvidas uma inquietante sensação de intimidade, destinos cruzados, ou seria apenas um turbilhão de cheiros, imaginação e solidão mal resolvida?
- (risos da voz, juraria com estridência) Verás que somos mesmo almas gémeas “ dust to dust, tears and love forever in a battle field called heaven”. Bons sonhos!
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