- Boa noite, alma gémea!
A surpresa já se transformara em esperança, o toque de telefone
que coincidia com o desdobrar da chave na fechadura, era um garantido
prolongamento das noites de uma insónia latente.
Era assim, todas as noites fossem tardias, todas as tardes, sempre
que o por do sol me assustava…
- Já não me imagino chegar a casa e não sentir a tua companhia do
outro lado da linha.
- Eu imagino-te a chegar…
Era evidente para Pedro que as coincidências têm limites e a voz
pressentia vizinhança, olhares envergonhados e fortuitos, Bom dia balbuciado nos corredores ou nos elevadores!
- Continuo sem adivinhar de onde me escutas e pressentes.
- A impaciência tolhe!
- O sofrimento aguça a curiosidade
- Ai sim?
Já pensaste se és ou não afinal uma mente exilada?
- Não tenho memória suficiente para me recordar. Parti porque
queria envergonhar o destino…
- E chegaste a um mesmo destino! – Atreveu-se a voz sem grandes
certezas
Mas Pedro parecia não a ouvir.
- Os primeiros meses dessa antiga nova vida, no recém-adquirido
ensino superior, representaram um duro amanhecer de longos dias de
incomportáveis descobertas, um sucessivo desvanecer dos sonhos da adolescência,
uma inexplicável capacidade de absorção de sentidos, uma maquiavélica e paciente
aprendizagem dos extremos, sistemática moldagem de comportamentos, dourada
insistência na preparação de uma elite, uma geração obrigada a absorver décadas
de vazio, de Estado Novo, de figuras paternais, de revoluções de cravos, da
queima de soutiens, de inflação, de choques petrolíferos, do small is beautiful, dos modelos de
crescimento sustentado, das expectativas redentoras de um novo mundo, tudo em
passo acelerado, comprimido, estilizado, impresso como marcas de fogo nas
nádegas de loucos carneiros de uma nova existência.
- Era assim tão tenebroso?
- O sucesso
prometido era tão inebriante quanto os efeitos de uma dolorosa cirurgia
plástica que nunca mais cicatriza, mas promete eliminação de gorduras
desnecessárias, lábios defeituosos, cérebros incapazes, e as visões de uma nova
vida de aventura, descoberta de seres, partilha de ideias loucas, derrube de
barreiras, fronteiras, uma perturbante recompensa de estarmos vivos, sem
sabermos o que desejamos, lendo em voz alta poemas de António Sérgio, reclamando
a nossa juventude.
- Então a
culpa foi do António!
- Foi dos
genes. Quando parti pela primeira vez já não consegui mais parar de partir. É
uma adrenalina impossível de conter
- Um curso
superior a meio…
- Uma série
de sonhos que só se alcançam na solidão e no desconforto do efémero.
- Já
adivinhavas tudo isso?
- Vá lá, não
me sobrevalorizes! Os sonhadores nunca antevêem o lado negro e obscuro do seu
sonho.
- Mas
voltaste a atracar…
- É
diferente viver no centro da Europa
- Ah! A
busca desesperada da centralidade
- Não. Em
busca da partida fácil, perto de tudo, longe das explicações, das prisões e dos
freios sociais
- Nada de
prisões especialmente emocionais?
A primeira
pausa da noite foi atravessada por uma gargalhada desproporcionada ao
sentimento da pergunta, ao atrevimento da voz.
Absolutamente
feminina, esta necessidade de se certificar de que não existem concorrentes, os
tais empecilhos emocionais – Pedro adivinhava-lhe a intenção mas a resposta não
saiu.
Porque ris?
– Seria inquietude ou desilusão, a insistência da voz?
- Não faço a
ideia do que isso representa! Sou um sentimental, mas pelas causas dos outros.
- Queres
dizer que nada se atravessa entre ti e essa miragem tua de navegador de asfalto
ou de carris!? A paixão compromete a descoberta? Nunca sentes que tanta
descoberta é cansativa, não serve para nada, a recompensa não tem corpo, porque
não há ninguém já á tua espera, quem sabe para te abraçar?
- É assim
que te sentes? – Pedro teve um palpite e não conseguiu guardá-lo para si, este
era o fascínio destas conversas nocturnas e sem rosto. Não havia freios. E, sem
percebê-lo, mais uma vez se defendia dos sentimentos, não fossem eles fatais.
- Desde que
te vi, que tenho a certeza de que somos espelhos…
- Como se
chamava a tua última desilusão?
- Tomas! E a
tua?
- Cristina!
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