“E quando ele tiver idade de ir para
a guerra?”
Quando estamos longe,
a nossa memória mais juvenil torna-se num potente motor de busca que recorda
acontecimentos improváveis, meticulosamente extraídos de um pedaço
descontextualizado de tempo, bem para além das profundezas da nossa
consciência.
E sem entender qual
tinha sido o gatilho das memórias que tinha disparado, L. deparou-se com um
reflexo no vidro lateral do táxi noturno, um miúdo de calções curtos e joelhos
esfolados que olhava atónito os pais, sem entender coisa nenhuma do que era a
guerra e aquela palavra redonda, mas clandestina e envergonhada: emigração.
A noite já cobrira a
cidade, uma qualquer metrópole sul-americana que bem poderia ser Bogotá, Lima,
Santiago ou São Paulo, tantas tinham sido as partidas e as chegadas nestas
novas geografias dos negócios, das oportunidades e do destino, que as
referências esbatiam-se entre as diferentes pronúncias de uma língua comum e
mestiçagens singulares.
Mas o táxi investia
pelas anárquicas ruas da metrópole em hora de ponta procurando, na
perpendicularidade das ruas secundárias, um impossível atalho para mais um
aeroporto, e a criança que se chamava L., cinquenta anos atrás, esborratava-se
nas gotas de uma chuva persistente que deformava a paisagem de fundo, os seres
sem expressão que olhavam para os resquícios de vazio em autocarros lotados, os
vendedores de cana-de-açúcar que exorcizavam a cana com rudes golpes de catana,
carrinhos de mão carregados de tudo e de nada, e um trânsito interminável que
tornava intermitentes as fileiras de prédios de cores escuras e encardidas, ou
apenas tijolos empilhados, sem ordem nem prioridade, apenas iluminados por
velas e santos que, esporadicamente preenchiam as janelas e cornijas.
Mas a imagem do
menino, agora mais crescido, renascia das gotas de chuva e projetava-se no
reflexo do vidro ou das poças imundas de água que enlameavam a face refletida,
de calções mais compridos e joelhos menos esfolados e, na mesma inconsciência
ideológica de adolescente incompleto, via os soldados regressar da guerra, e
depois milhões não soldados de grandes malas e um olhar aterrorizado, ainda
mais confuso porque os pais lhe haviam explicado que os emigrantes são aqueles
que partem.
E estes partiam para
onde?
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