A onda das
memórias, instáveis mas profundas, arrastaram Pedro para as penumbras daquela
sala mágica, para aquele concerto, Fausto de seu nome, as luzes que focavam o
artista, vermelhas e quentes, o coro de vozes que pairavam por este rio acima, uma comunhão de
corpos sentados no chão, junto ao palco, com um odor a paixão e a erva, olhares
bem acima, mentes transportadas para a epopeia dos Descobrimentos, em tom de
folclore, redenção e exaltação daquilo que julgavam ser o espírito
revolucionário em fase de apagamento, mas que não passava de um tolo orgulho
nacional, numa época de formidáveis aventuras e acima de tudo a música era
linda, inspiradora...
- És tu?
A campainha
da porta tocou.
- Sim, conheço as Asas do Desejo de Wim
Wenders – A inacessível Cristina, aparecia do outro lado da ombreira de
telefone na mão direita, dois bilhetes de um qualquer comboio sem destino
impresso, igual ao deslumbramento inicial, sedutora de tão distante, igual aos
sonhos destruídos de um poeta inseguro.
- Um anjo não argumenta!
Três anos depois! Acaso ou destino? Pedro não
sabia e Cristina não lho explicou.
- Hoje os céus de Berlim estão cheios de
asas.
-?
- Sabes que dia é hoje?
- 9! É pressuposto lembrar-me de algo?
- A partir de hoje sim! O muro está a cair!
E sem que Pedro pudesse ou soubesse
argumentar que não devemos provocar o destino, que a verdadeira liberdade é
partir, que a conversa do Wenders era apenas retórica existencialista, e que
sem muro deixava de haver inacessível, e tudo era …., Cristina, pousou os
bilhetes sob os seus olhos e sussurrou-lhe ao ouvido:
-
Carruagem 21! Amanhã de manhã. Partirmos é sinónimo de chegar, como dois sinais
menos que se anulam…
- Berlim não é uma cidade de amor e encontros
- A revolução é o laboratório de amores
épicos…
-…e impossíveis!
- Não, se o mundo hoje mudar para sempre,
estaremos definitivamente ligados como siameses à centralidade…passada e
futura!
Incapaz de fugir, de evocar a timidez
genética, a solidão criativa, a indecisão perante os maus momentos que
inevitavelmente se seguem aos bons, Pedro limitou-se a suspirar:
- As asas do desejo!
(continua) se nós quisermos.
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