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sábado, 30 de agosto de 2025

As Latitudes de Óbidos sessão um

 


Os despertares não precisam de ter consequências, basta rodearmo-nos de livros e letras, palavras e histórias que transbordam das prateleiras vertiginosas da livraria do mercado ou nas colinas suaves e ondulares da livraria santiago, que protegem o altar da capela que a alberga.
Nas profundezas do festival literário, os diálogos intimistas empurram o turismo de massas para a rua direita e nós, que ficamos lá dentro, entramos no universo paralelo que o escritor de Domingo à tarde se atrevia de apelidar de “nossos museus imaginários”
Sim, “quem tem um bom museu imaginário na sua cabeça, está mais protegido contra a inteligência artificial”, porque é nas emoções. e não na criatividade, que se revela o homem novo do novo século.
Mas só conseguimos imaginar, se pararmos de ver, porque estarmos sempre a ver pode impedir-nos de ver o futuro e as imagens ininterruptas bloquearem a nossa capacidade de visão.
Mas, neste fim de semana de retiro, até a intelectualidade esclarecida não consegue desligar os ecrãs dos novos ventos do Oeste que não se resolvem, repetindo os nossos dogmas passados, mas desmentindo, sem descanso, os atuais dogmas deles com uma visão inspirada do futuro.
Para isso, também nós temos de parar de ver, de bloquear as imagens para preservarmos o nosso museu imaginário. Tal como viver um fim de semana numa bolha.
E enquanto pairamos sobre as velas e sobre o quinteto de cordas que festejam a chegada da noite em Óbidos, da noite e da paz dos forasteiros, fechamos os olhos e imaginamos que é através da empatia que sobreviveremos às vagas de um futuro imperfeito.
Ou não!
Entre a audiência esclarecida, daquela que concorda que o direito de escolha da saída é uma questão psicológica profunda, há quem alerte que empatia em excesso já provocou a extinção dos dinossauros. 
Difíceis são os dilemas do nosso futuro, e que bom é podermos falar sobre eles




sexta-feira, 29 de agosto de 2025

As Latitudes de Óbidos sessão dois

 

O escritor que é engenheiro agrónomo não escreve muito, sente uma dor grande ao escrever ficção, para escrever temos de ter uma razão muito forte porque deve haver coisas melhores que passar oito horas por dia a inventar mentiras, oito horas por dia por cada meia página escrita porque escrevo para que gostem de mim, na ruralidade das minhas origens ou nas cidades do norte da Europa que me fascinaram como estivesse destinado a ser o embaixador do pensamento nórdico
Por teres 60 anos, por teres sido parte do universo de sonhos que era o DN Jovem, por sentires dores na escrita, por escreveres pouco e para gostarem de ti, e por teres saudades dos doze anos em que não publicaste porque sentiste falta que as pessoas gostassem de ti.
Gostei da modéstia com que te desalinhaste com os  novos ventos da auto ficção e como atribuíste, sem falsos pudores, a rapidez da escrita das novas gerações de escritores à profusão dos cursos de escrita criativa, assim uma espécie de pronto a vestir (escrever) uma antecâmara das promessas da inteligência artificial para o futuro da literatura
(Sim, eu sei que não disseste nada disso, mas senti-me com esse direito de interpretação abusiva porque afinal de contas também tenho a rondar 60 anos e fui publicado no DN Jovem quando sonhava e tinha 22)
Bela conversa, José Riço!



quarta-feira, 31 de julho de 2024

Sonhos de uma noite de Verão

 


Foi apenas um sonho de meia noite, entendida como uma mera metade, como se fosse possível, mas é, ter duas noites de sonho e de sonos diferentes na mesma noite.
Ou melhor, na primeira metade da mesma noite, um sono tranquilo e sem memórias e outra metade povoada de sonhos e agitação, tão cristalinos depois do amanhecer que só podia ser premonição.
Tinha viajado para Mumbai e tinha-me instalado na cidade velha, aquele pedaço de Mumbai que é cuidadosamente escondido dos estrangeiros, ruelas que não deixavam o sol entrar, mas o sonho não tinha cheiros e havia , na clarividência das imagens, um filtro social de auto censura, as ruas eram pitorescas, não pobres, todos as imagens reforçavam as cores de uma multidão orgulhosa e omitiam as misérias que escorriam pelos esgotos dos becos. 
Nada, o sonho era seco e aspiracional, uma espécie daquele Oriente asséptico que só existe nos filmes. 
Certamente influencias do orientalista Martin, o protagonista do romance de Abdulrazak Gurnah e os mistérios do seu desertor, nos confins do império britânico da costa oriental de África, mesmo encostados aos primórdios do século vinte.
Na imensa palete de culturas e de povos que coabitavam Zanzibar, a história desenvolvia-se em redor de uma família de comerciantes indianos oriundos de Calecute, Mumbai era afinal um equívoco, afinal de contas os sonhos não são assim tão precisos.
E o romance é um retrato do confronto de culturas, árabes, Somalis, Hindus e o império colonial britânico que ainda acreditava que, tal como na América, os indígenas seriam liquidados pelo tempo.
Não foram os odores exóticos do corno de África que me provocaram a agitação noturna de uma meia noite de verão, entendida como já sabemos, como metade de uma noite.
Nem a visão insensível e preconceituosa do colonialista branco.
Nem o despeito nostálgico do escritor refugiado.
Foi o mosaico complexo de culturas que me fez deambular, qual sonâmbulo, pela Mumbai deserta, na procura da propriedade que os meus antepassados me tinham deixado como herança, pelo menos era desta forma que o narrador do sonho me apresentava a mim próprio.
Era afinal uma casa modesta num bairro modesto e uma prole numerosa do ramo indiano da minha família que me esperava, de braços abertos debaixo da porta do império, junto ao mar da Índia. 
Acordei sem entender porque é que havia uma prole indiana que era minha, e aí o sonho não esclareceu, não havia nenhum Albuquerque na história, nem nenhuma possibilidade de pertencer a uma prole de casta incerta, numa aparição tão fugaz.
Mas no romance de Gurnah havia uma outra história, a de um amor proibido entre o orientalista britânico Martin e a irmã do comerciante indiano muçulmano Rehana, uma história ocultada dos pormenores com um pudor que o autor pouco espaço deixou para a imaginação do narrador dos sonhos.
Por isso mesmo acordei sem conseguir explicar a minha numerosa família indiana, porque, depois de acordado, a única imagem coerente do sonho era mesmo a porta do império e o oceano indico.
Mas, nem por isso, me esqueci da razão por que razão tão materialista viajei à India num sonho de Verão.
Chamava-se Fredrik e era o Administrador branco do Império Britânico nos confins do Corno de África, acabado de chegar da India.


segunda-feira, 22 de julho de 2024

Sons do velho Sul

 


Dentro das muralhas mora a cidade velha, ou a vila adentro como ela gosta de ser tratada. 
A velha senhora mantém-se reservada, a calçada é irregular, as pedras são de tamanhos todos diferentes e intervalos tão imprevisíveis que anunciam desastre em cada pedaço de ruga que a rua tem. 
Este semblante rústico da velha senhora, entenda-se como uma metáfora da cidade velha de Faro, intimida as hordas de estranhos, o que favorece a propagação dos ventos, do silêncio e dos perfumes que se transportam, com uma dose temperada de calor, por cima da vegetação rasteira da ria, muito para lá do Sul cristão, onde o mar termina e recomeça o continente. 
Entenda-se como uma metáfora do norte de África, como se fosse possível ouvir os sons do bazar, com tanto mar por permeio. 
É verdade que a indolência é despertada pelo verão e pelos fins de tarde de domingo e, ao redor do grande edifício amarelo, a quem chamam de fábrica da cerveja, mas que nunca foi, ouvem-se outros sons. 
Escondidos por detrás dos portões fechados, pintam-se as cores do festival Mar Motto, um festival de manifestos da tão efémera arte urbana a favor de um mar eterno.
Porque até as causas precisam de dia de folga, os manifestos de vilhs estão, como a velha senhora, em modo reservado. 
Mas na associação recreativa há uma menina vestida de negro, protegida por tatuagens com significados à prova de estranhos e provavelmente (ou não) um piercing solitário, não posso garantir, porque os meus olhos ficaram presos na caixa de madeira onde ela guardava as notas de cinco euros, sim, porque hoje há concerto, e os sons também são do Sul, a banda arrasta-nos para os sons do improviso e do jazz e a voz da miúda que canta preenche todo o pátio, em espiral, uma espécie de tornado invertido, e a miúda é compositora e o baterista tem um ar fixo nas paredes do pátio e o tipo do baixo, bate o pé e marca o ritmo, há toda uma conspiração de sons e de cumplicidades que envolvem a vintena de mesas, o mestre do som, os menos jovens de olhos gastos, mas felizes, que preparam as bebidas e que perguntam pelo nosso bem estar, como fosse possível estar mal, no fim de uma tarde de verão com um copo de vinho na mão e um som de enternecida nostalgia (ou seria apenas ao ritmo da decadência da alma velha?) na associação recreativa e cultural de músicos, despojados de tudo o que a arte não precisa. 
E ninguém estranha que, neste local do culto de pureza dos sentidos, afinal de contas as associações recreativas fazem parte do meu passado suburbano de tudo o que a cultura significava para nós, as multidões de estranhos se mantenham longe, e até o ruido dos aviões em aproximação à pista, longe de representar uma intrusão nos sons do pátio, da diva, dos músicos e da audiência que sorve a diferença em pequenos goles de vinho branco, acentua a singularidade do momento congelado no tempo, essa memória intensa mas efémera, do culto subterrâneo e pós-industrial em que qualquer um de nós se poderia ter transformado. 
Quando anoitece, a cidade veste o fato de maestro, no magnífico auditório do teatro das figuras, e a orquestra de gala oferece um espetáculo servido como uma refeição, palavras do maestro Martim, uma entrada suculenta da opera dos três vinténs de Kurt Weil, quando o Jazz invadiu despudoradamente a música clássica, uma história de gente menos recomendável mas também da mulher loura e fatal, a história que tem vários momentos, ele queria dizer andamentos e disse-o de tal forma como se a música sem letra pudesse contar uma história, sim, é verdade que a dele, a de Kurt Weil contava, "quem esteve em Berlim, sabe do que eu falo" o maestro tem um humor fino, mas não permanece imperturbável quando nos empurra cem anos para trás e nos puxa de volta, cem anos são apenas cem anos e o seu sentido de humor é também uma evidência de que conseguimos beber a história da cidade, qualquer que seja a época em que a visitamos, tal como os andamentos desta coletânea de Weil são as vieiras gratinadas do concerto. 
Cem anos é, pois, o mote da noite de gala, cem anos tem música de Gershiwn, uma rapsódia de azul, mais de quinze minutos de uma sinfonia de sons intemporais, o prato principal é servido em Manhattan, os loucos anos vinte na cidade de todos os ruídos e todas as melodias. 
Não envelheceu um minuto, assegura-nos o maestro e o solo de piano prolonga a magia das noites de Verão, cem anos depois sentimo-nos renascidos pela alma velha, não são sons do Sul, mas este Jazz do norte tem as mesmas raízes no sul profundo de África, sim também no teatro das figuras, é apesar da multidão contida que olha para o palco, sente-se a mesma brisa quente que favorece a propagação dos ventos, do silêncio e dos perfumes que se transportam, com uma dose temperada de calor, por cima da vegetação rasteira da ria, muito para lá do Sul cristão, onde o mar termina e recomeça o continente. 
Opíparo e sem ressentimentos. 
A sobremesa foi servida numa taça de cristal, sabores urbanos de Cole Porter, sem intervalos nem explicações porque já aprendemos que uma música sem letra consegue contar uma história. 
Night and Day.
Doce, crocante, quente e frio, sem compartimentos. 
Hoje descobrimos que, em Faro, ainda vive a alma velha do Sul, que intimida as hordas de estranhos e os mantém à distância.



segunda-feira, 15 de julho de 2024

Os fantasmas da liberdade

 


Vista da margem sul, da encosta do convento de Santa Clara, os anos não parecem ter passado por ela, sem rugas no horizonte, as fachadas da cidade histórica coradas pelo Sol da tarde por ser envergonhada e provinciana, e há um sotaque beirão que não descola da boémia que cheira a cerveja e invade as calçadas que serpenteiam a Sé velha. 
Olhando com atenção redobrada por cima das pontes, há um espelho de água que absorve toda a tradição que se acumulou nos séculos de vida académica e de conhecimento partilhado. 
E de boémia incontida. 
Da margem esquecida do Mondego, vive-se uma atmosfera de Outono nos jardins do convento apesar do Junho avançado, que o calendário não consegue desmentir, provavelmente porque é domingo à tarde e as tardes de domingo são tristes e nos impelem para as memórias do passado. 
Ou provavelmente porque as minhas memórias de Coimbra viveram todas do outro lado do rio, onde a ação acontece, seja qual for a geração ou a década. 
Ou porque o convento se despojou da clausura, dos hábitos austeros, orações e aí jesus, sim, quando Coimbra era também um centro do roteiro da religiosidade, uma porta da religião para o mundo laico da ciência. 
Do outro lado do rio, a uma distância segura, que não comprometa nem os rituais, nem as crenças, nem o acesso privilegiado a Deus. 
Abanava a cabeça, quase descrente, não filha, não pode ser aqui, não é aqui que mora a Bienal, Ano Zero dos fantasmas da liberdade. 
Enquanto olhava para as minhas memórias de Coimbra, há lugares assim, que passam incólumes à nossa passagem, e só as nossas rugas se refletem nas águas do rio que enchem a paisagem de cheiros a serra. 
Mas, afinal, a bienal mora mesmo aqui. 
Os corredores do convento alternam entre os despojos de um local em vias de perder a sua memória, uma pré-ruína de vazio do qual sobram apenas gritos de morcego produzidos digitalmente que percorrem os tetos do convento ao ritmo das correntes de ar, e as interpretações ousadas do presente, para que nada nos parecesse sequer familiar, como se mais importante do que o significado das coisas ou das palavras fosse a liberdade de expressão sem significados precisos. 
Arte contemporânea, portanto. 
Com locais de descanso, intervalos nas celas abertas, janelas para a cidade, sempre no chão pejado de almofadas, como se a liberdade também precisasse de pausas e de momentos de contemplação 
Há referências objetivas dos curadores da exposição ao filme de Luis Bunuel de 74, ao cinquentenário da Revolução dos Cravos, e ao centenário do manifesto surrealista de 1924.
E há uma referência muito explícita ao significado literal das palavras, os fantasmas da liberdade remetem-nos para a disputa entre o desejo e a realidade. 
Quase um lamento sobre as limitações da liberdade, não enquanto conceito, mas enquanto "paz, pão, habitação, saúde, educação" 
Apesar de, na Bienal Ano Zero, as instalações não sejam, de todo, um slogan renascido dos cinquenta anos da história da liberdade. 
O experimentalismo do século vinte e um já não se alimenta de memórias e os jovens artistas não perdem tempo a pensar como é suposto se conquistar a liberdade. 
Na outra margem, o dois cavalos engasga-se enquanto procura alcançar a praça da República, já na década de oitenta era uma relíquia, sempre sobrelotada a juventude era rebelde, mas não demasiado, ainda havia resquícios da revolução nesta geração que nasceu tarde de mais para ser verdadeiramente rebelde e anárquica e estávamos todos a ficar fora de época, quem havia de se lembrar de voltar a Coimbra sem ser estudante, procurávamos aspirar as últimas migalhas de aventura, álcool, festas e inconsciência, antes da idade adulta começasse a assumir o controlo da tua liberdade. 
O dois cavalos é a única memória nítida que me resta desta época de vapores e libidos exacerbados. 
Coimbra, finais da década de oitenta. 


Pendurados sob os tetos do corredor do primeiro piso do convento, os cartazes de Carla Filipe são únicas imagens da revolução e das memórias que vivemos dos tempos em que o tempo ainda era, para nós, imortal, as caras das mulheres que substituem os rostos dos manifestantes, não eram relevantes as causas porque o manifesto era feminista, e os tons vintage dos cartazes eram a afirmação da nossa época, em que a liberdade não era um conceito, tinha corpo, imagem, cor e rosto humano. 
São também, e afinal de contas, apenas memórias do tempo das nossas liberdades conquistadas, no tempo em que teve de ser, nem sempre as melhores memórias, quando queríamos ser livres mas não sabíamos o que verdadeiramente isso representava e quando percebemos que a liberdade significava muito frequentemente solidão e desassossego. 
E em Coimbra, não há vestígios da passagem do tempo e só as nossas rugas se refletem nas águas do rio que enchem a paisagem de uma nostalgia bem resolvida. 
Sem vapores nem libidos exacerbadas. 
Quantos cavalos são necessários para mudar o mundo? - questiona-se a artista Priscilla Fernandes, mas o curador apressa-se a assegurar que se trata apenas de uma sátira, mas nas paredes do fim da exposição, os cavalos surgem libertos de conotações de dominação, heroísmo, autoridade e força ostensivo, dedicando-se ao lazer, um privilégio que se julgava exclusivo dos humanos. 
Quando curvávamos, a todo o vapor, no Dois Cavalos da República de Coimbra, sabíamos, pela experiência dos outros, que nunca iríamos virar, e a suspensão do Citroen era a única garantia que a nossa liberdade precisava. 
Não há fantasmas que durem sempre, quando insistimos em cultivar o imaginário da liberdade 
Mesmo que tenhamos de regressar às longínquas memórias de Coimbra.




domingo, 7 de julho de 2024

O último comboio para o Estoril

 

Há lugares assim. Quando o mundo se desfaz em insanidade, uma elite de gente que antecipa o Apocalipse, refugia-se a uma distância de segurança, e a periferia mais ostracizada ganha uma nova luz, como se o miúdo gordo e caixa de óculos, um fantasma que percorria, solitário, os corredores da escola, renascesse como o mago da bola, uma nova moda em que todos ansiassem ser olhos míopes e corpo de panda. 
Em tempos de precipício, as pessoas encontram conforto na imperfeição e nas dificuldades de socialização, como se fosse uma proteção contra a fúria dos infames.
Na casa Sommer, em Cascais, o projeto de autor chama-se blackout, mas a atmosfera de filme negro que cobre o portfólio de quarenta e cinco fotografias que, a partir do presente, retratam o início dos anos quarenta no novo eixo de centralidade e de paz da Europa de uma escuridão esculpida a ferro e fogo, recorda-nos sobretudo a bipolaridade que corrói a mente dos refugiados, entre a euforia de poderem respirar a tranquilidade e a culpa de a respirarem enquanto os outros aniquilam o que ainda sobrou das suas memórias. 
Uma dicotomia construída de glamour e de conspirações sonhadas, por aqueles que sabem, mas ainda ousam duvidar, que vão ser párias para todo o seu futuro. 
Lisboa, Estoril algures depois de Junho de 1940 e o preto e branco de alto contraste das fotografias do autor e das provas documentais que garantem que aqui se viveu a antecâmara do fim do mundo, e uma multidão de seres de hábitos e roupas estranhas mudaram a paisagem mental dos nossos atordoados antepassados. 
Como se nascesse na pradaria, e sem tempo de construção, uma metrópole alienígena. 
Nas vitrines da exposição do Alexandre, uma capa do Diário de Lisboa de um qualquer dia de verão de 1943, noticiava as manobras de simulação dos bombardeamentos em Lisboa que nunca vieram, o mesmo jornal que citava fontes do Terceiro Reich para desvalorizar os resultados da ofensiva soviética e fontes de Londres para noticiar as missões aéreas sobre Berlim. 
De repente, o regime que não gosta de se questionar, sente-se assolado pelas subtilezas da neutralidade. 
A história do autor conta outras estórias, é humana a necessidade de construir enredos que facilitem a compreensão humana do colapso de valores que representou a última guerra mundial, como a paranoia dos ataques aéreos surpresa e a do amor impossível entre uma refugiada alemã e um espião inglês. 
Dentro da casa Soller, os visitantes são espaçados, mas lá fora, e apesar do sol ser um sorriso sobre o azul, o vento não segura as copas das árvores, nem as bandeiras do porto, nem as saias das mulheres de vestidos brancos e óculos escuros e, de repente, há regressos do passado que moldam o presente, e as ruas do presente da linha do Estoril estão lotadas dos novos expatriados, que fazem compras no mercado saloio e inflacionam os refúgios dos locais.
E não há ainda sinais de mundo em carne viva. 
As saias das mulheres de vestido branco e de óculos escuros são, claro, apenas uma metáfora à nostalgia dos anos quarenta, uma tentativa (aliás indecente) de procurar semelhanças nos tempos de hoje, uma insinuação de que poderemos estar, mais uma vez, à beira do abismo, apenas alegorias usadas para manter o interesse na prosa, porque hoje a diversidade do mundo que se instala por cá, já não causa temor nem espanto, e já sabemos todos que não é possível prever o futuro só com base no conhecimento passado. 


E, hoje, a linha de Estoril é um promontório de ventos cruzados, às dezenas de línguas e dialetos da Europa que se estendem desde o Norte e desde o Leste, sobrepõe-se um sotaque que sobrevoa o anticiclone dos Açores, há afinal um vento forte que sopra do ocidente e de repente, só depois de termos visitado o passado na casa de Sommer, nos passou pela cabeça que a Linha, nos confins do mundo, segundo a geografia chinesa e a civilidade europeia, é testemunha da inversão do último longo ciclo de emigração no mundo. 
Ann, a minha nova amiga de Miami assegurava-me hoje que há uma febre lusitana daqueles que sabem onde fica a Europa. 
Sim, Ann, eles andam por aí, e não há nenhuma iminência que pareça justificar esta nova centralidade do mundo ocidental, na periferia saloia do Atlântico Norte, mas não consigo deixar de pensar que tem de haver algo de premonitório neste súbito fascínio pelas festas populares, pelas sardinhas assadas e pela indolência dos nossos brandos costumes e até pela nossa falta de ambição. 
Falta o glamour, as sombras contrastadas da urgência e a intensidade das vidas que antecedem a iminência do fim do mundo, mas, ao contrário do que se passava na geração de quarenta em que Lisboa era a única ponte possível para a América, estes parecem vir para ficar. 
Veem afinal a fugir de quem? 
Lá em baixo, para lá da baía, há uma multidão de risos e de gente feliz, em harmonia com a terra prometida. 
Às cinco em ponto, na gare da estação ferroviária, o comboio apitou uma vez só e, quando se afastava ronceiro, mas determinado, a caminho do pôr do Sol e de Lisboa, parecia dirigir-se a um final perfeito de um filme dos colonos pioneiros do antigo oeste. 
Mas o comboio não era a vapor e a última imagem que retive na memória já não era a preto e branco. 
E, na exposição da casa Soller, cada imagem tinha um número e um adjetivo.
Muitos deles premonitórios.



segunda-feira, 7 de maio de 2018

A hora de António




Não parece interessar muito que tenha sido construído em 1586 por Filipe, o espanhol, para se defender dos holandeses e dos ingleses, recuperado após o terremoto de 1755, que tenha desempenhado um papel determinante nas lutas entre absolutistas e liberais, que tenha sido regimento do exército até 1915 e, posteriormente colónia de férias do colégio de Odivelas.
O que a multidão comenta nos corredores labirinticos do forte de Sto. António, naquele Domingo de Verão antecipado é das razões, do momento e do local em que o António terá caído da cadeira e, claro, onde está a cadeira?
Mas o forte também se exprime na primeira pessoa, agora desbastado da densa vegetação que o cobria, orgulhoso do fosso em estrela e das vigias penduradas sobre o mar, pintado de amarelo, azulejos recuperados do abandono e da depredação de anos de esquecimento, um exemplar surpreendente da arquitetura militar do século dezasseis.
E as alusões às epopeias marítimas e aos poemas de Camões lembram-nos que o essencial deste forte é a nossa História e as nossas ambições marítimas
Mas ainda se respira o cheiro a tinta, não fosse o 25 de Abril a única data possível,para abrir ao público o forte do António.
Tão simbólico quanto o segredo e a longa ocultação deste espaço desde que deixou de ser útil ao Chefe de Estado e às meninas de Odivelas.
Como se houvesse a necessidade de guardar um vácuo na História, um período de nojo ou os cinquenta anos de ocultação de todos os segredos de Estado.
Fico dividido entre esta tese e a certeza absoluta de que se tratou de um enredo burocrático em que as nossas nobres instituições, frequentemente se enredam.
Os interiores são frugais, pela sua herança militar, pela sua ausência de História recente, mas sentimos que só desta forma se respira a solenidade do espaço.
Vive-se muito bem com o minimalismo das formas no forte de Santo António e com as gigantes almofadas nas quais os quase deslumbrados visitantes se deixam cair a cada escadaria que sobem e a cada corredor que dobram.
Mas o chefe de família que gesticulava num dos pátios interiores do forte, insistia na tese conspiratória, perante uma plateia júnior desinteressada e ausente, afinal de contas o homem caiu da cadeira em 68 e só morreu mais de um ano depois.


sábado, 28 de abril de 2018

Lita Cabellut

"Não conheceu o seu pai, e a sua mãe trabalhava como prostituta e abandonou-a aos três anos, deixando-a com a sua avó em Barcelona. Foi à escola mas sofria de dislexia e passava o dia a mendigar pelas ruas. Aos dez anos, a sua avó morreu e foi internada num orfanato, onde foi adotada aos treze."

O seu futuro foi exuberante, uma explosão de técnicas mistas, cores inesperadas, uma perfeição alucinante e grandes formatos.

Há coincidências assim.

No Centro Cultural de Cascais





segunda-feira, 19 de março de 2018

Os adoradores dos elementos




Eles nascem todos os Domingos de manhã em que os elementos se revoltam, transpõem as barreiras de proteção porque o horizonte parece sempre mais longe e correr riscos desnecessários é uma latina afirmação de virilidade.
Como se os elementos fossem a representação suprema da condescendência da natureza, eles correm nas margens, acalmam as ondas, contornam o vento e refletem as nuvens e o Sol.
A diversidade cultural, os nossos corredores de fundo e a afirmação dos bichos de estimação.
Os adoradores do mar e do céu.
Na foz do Douro.












domingo, 14 de janeiro de 2018

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Hoje desfilamos o Verão com um olhar de Inverno. Até somos capazes de ouvir os ruídos das crianças, a voz do vendedor de bolas de Berlim, o apito do banheiro 
Seríamos, mas não escutamos nada, a não ser os passos abafados dos corredores de fundo.
Os atletas da chuva, os agitadores das poças que competem com o mar por uma margem segura.
Nas memórias do Verão há uma espera impaciente, desconsolada, uma ansiedade que até emana um certo brilho, serão suores frios, lágrimas de ferrugem ou talvez  pingos de uma humidade que afugenta os adoradores de calor.



Em tarde de superfície frontal, as memórias da época balnear sofrem com o desgaste dos elementos.
Mais do que irão sofrer com a azáfama dos veraneantes, porque a vida das memórias é uma história circular.





Sofrem mais do que com os gritos estridentes da sofreguidão das horas de Sol, uma cor de pele e ampolas de iodo e vitaminas, porque também as memórias também têm sentimentos.
Abandonadas nos maus momentos pelos que se esquecem que as memórias também sofrem, têm os sentimentos dos átomos metálicos
Solidão em estado cru.



Em tarde de aguas furiosas que vêm do céu, as memórias parecem ter perdido o sal.

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domingo, 24 de dezembro de 2017

Caleidoscópio



Curry é uma marca, uma produção cuidadosamente explorada de cores quentes e ambientes exóticos em que as imagens jorram com uma fúria de realizador de todas as causas.
Um circo que se reacende em cada cidade que o recebe, um palco que se monta e desmonta ao ritmo do grau de entusiasmo das audiências sedentas de lugares distantes e de atmosferas inacessíveis.
Por vezes é dificil romper com a encenação que representa a quase perfeição formal de um mundo inteiro que posa para a camera, desvendando o pudor das culturas distantes, dos dramas que se pressentem em cada negativo e em todas as expressões
Uma exposição de duzentas imagens sem ordem precisa nem cronologia lógica, é de uma quantidade tão profícua que desfaz o purismo da arte de exceção, das obras únicas, da reflexão em torno de um conceito e da intimidade dos espaços vazios.
Nas exposições de Curry, as multidões revêem os episódios de National Geography, uma versão realista dos mundos animados de Disney.
O caleidoscópio de cores quentes parece suspenso pelos ares e cada olhar é uma imersão numa nova história, a história do mundo.
Só é pena que nos mundos de Steve, nada permaneça escondido.
Por vezes o encanto está no que se esconde e menos no que se mostra.

Saímos com a retina inundada de cores e imagens extraordinárias, mas carente de mensagens subliminares 






sábado, 18 de novembro de 2017

7 / 7 - Viagens na minha Terra



Memórias de um morto precoce
Herb Ritts - Plena Luz
Cascais 01/Out.



Os homens cansaram-se de ser felizes
Bordéus de frente para o rio e de costas para o passado e para as memórias
Vestígios de um revivalismo em carne viva
Porto de Bordéus - Na sombra da base de U-Boats
20/Out.



Podia ser um casal abraçado no espelho de água, mas o importante está no que se esconde...o fotógrafo ambiciona a felicidade
Bordéus 22/Out.





Depois das vindimas e do Verão escaldante
Não há pontes impossíveis
Régua 28/Out.





Nas sombras da última ceia no Mosteiro de Tibães
O homem reflete (sobre) o seu presente
Braga 29/Out.





Flauta encantada
No abstrato, não há limites
Lisboa 01/Nov.



A última valsa
Ela atravessou a luz
Mafra 12/Nov.

domingo, 1 de outubro de 2017

Um olhar de rua


Na estação tonta, não há, por definição assunto.
Por isso, transformei-me num vagabundo da imagem, um rafeiro que deambula  pela costa à procura de companhia e regressa, esporadicamente, a terra à procura de quem o alimente.
Afinal de contas, rafeiro não tem dono mas tem direito a miar.
E o meu olhar dominante nos últimos trinta dias de olhar de rua é uma sucessão de banhos de mar, turistas felizes, adoradores de Sol e domadores de ondas.
Na minha fase de rafeiro costeiro.
Já mais perto do fim de Setembro regressei a terra à procura de alimento e, antes de miar, encontrei um sapato vermelho e uma caneta dourada.
Suspeito que a época tonta está a terminar!


Happy wave


Foreigners by the sky



Hit by the wind


Skins left behind



Desert ilusions



Ocean's eleven


The girl's red shoe


The golden pen

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

O da boa memória





Lembro-me bem da vista súbita, na curva à direita e na sinuosa descida até ao vale.
Lá em baixo, no limiar da dupla faixa de rodagem da nacional 1, permanecia o mosteiro, tons amarelos num decampado poeirento que bem poderia representar a vitória triunfal de D. Nuno sobre os intrometidos espanhóis.
Era uma imagem repetida, um marco das viagens rodoviárias ao Norte.
O mosteiro solitário, imponente, orgulhoso e desafiador.
Tal como os primeiros séculos da afirmação de um novo reino, de poder real e da autonomia de um país.
Tão importante que se afirmava na solidão da paisagem, como se fosse esta a forma de realçar as suas características únicas, o esforço despendido na sua construção, ao longo de mais de cento e cinquenta anos, e uma espécie de grandiosa Ermida em memória da dinastia de Avis.
Um projeto de legitimação.
Hoje, o mosteiro foi reduzido à sua própria dimensão, pela intrusiva malha urbana nascida da fama e do proveito da república.
Desvaneceu-se a auréola exterior e a singularidade do momento, na mesma proporção em que se partilhava a nossa memória coletiva com o mundo.
Porém, intocável na sua essência interior, cruzando a porta principal, virando a sul para a sala do capítulo, assegurando que o fundador da dinastia indicava o caminho do império ou atravessando a capela-mor para leste, desafiando os nossos truculentos vizinhos onde, ainda hoje permanece uma auréola mística de um claustro inacabado, inundado de um silêncio redentor.
Como se o mosteiro precisasse das capelas imperfeitas para se completar.
Como se houvesse uma qualquer conjugação de astros que explicasse a disposição dos claustros e uma abóboda feita de estrelas.
Lá fora, no antigo terreiro poeirento, renascia a nova feira medieval, como se não tivesse havido História depois de D. João I.
Assavam-se borregos ao luar, o David Carreira desafiava um público fácil e contorcia-se contra o som, um inimigo muito mais devastador que os espanhóis de Aljubarrota.
D. Duarte sorriu, olhou para D. Leonor e estendeu-lhe a mão.
E todos percebemos o significado das capelas imperfeitas.
E, apesar de também entendermos que os tesouros não podem ficar só para nós, não deixamos de ter saudades daquela visão intermitente e repetida do majestoso e solitário mosteiro amarelo que abarcava toda a paisagem e se nos deparava, pelo menos a cem à hora, sempre que nos preparávamos para ultrapassar um camião de mercadorias, no limiar da dupla faixa de rodagem da estrada nacional 1.

Eu e o da boa memória.