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segunda-feira, 13 de maio de 2024

Last Train to Yazd

 


A Pérsia lidou bem na História com as autocracias esclarecidas, até permitiram a expansão do Império, aumentaram o bem-estar das populações e, há quem jure, que geraram felicidade nos povos conquistados. 
Bom, salvaguardando as devidas distâncias de índole moral que a história comporta. 
(E, bom, eu sempre preferi as democracias imperfeitas às autocracias esclarecidas, sempre, mas isso sou eu que tenho a felicidade de poder escolher, o que parece nunca ter sido o caso do povo persa)
E as revoltas aconteceram na história do Irão sempre que os autocratas perderam o discernimento, sempre sangrentas e disruptivas. 
E depois, nascem os mártires com a morte dos povos, muitas vezes por culpa própria de quem tem o poder, algumas pela conjugação desfavorável dos astros do universo exterior.
E, portanto, os mártires do irão têm estatutos diversos, os descendentes do profeta, os soldados celebres, os soldados incógnitos e as vítimas incógnitas.
Aos primeiros são construídos faustosos mausoléus, aos segundos são atribuídas todas as honras e manifestações públicas de apreço no aniversário da sua morte e Mausoléus mais modestos, aos terceiros é-lhes pendurado um cartaz vitalício numa das Avenidas principais do local em que nasceram.
Só as vítimas anónimas permanecem anónimas e vítimas para todo o sempre. 
Em Kerman, na primeira aproximação ao centro do império de Avenidas largas e bem infraestruturadas, periferias europeias e de um bazar da abundância, há alguns meses mais de uma centena de vítimas anónimas lembraram a memória de mais um mártir soldado que procurava apagar com lama as pegadas dos infiéis. 
Aparentemente morreram sem desejar ser mártires e, ao que tudo indica, apenas por serem obedientes discípulos xiitas da República Islâmica.
Há lugares e regimes em que nem é fácil ser obediente, quanto mais ativista pelas causas de igualdade.
Tudo isto a propósito das autocracias esclarecidas ou das outras, em perda irremediável de discernimento.
Ontem em Kerman, um dos maiores bazares do Irão fervilhava de indiferença geoestratégica, de espírito mercantil e de curiosidade estética, confiança na sua própria imagem e ansiosa vontade de partilhar, partilhar fotos, partilhar os parcos sujeitos na língua esperanto do mundo exterior e, também comprar e vender fruta e relógios, tecidos e especiarias em corredores sem zonas premium, um Caravansarai, uma mesquita e uma saída principal inundada de táxis amarelos em três filas de estacionamento sem grande fervor na procura de clientes nem na discussão sobre futebol, porque sobre política, os mais velhos não têm opinião. 
Na estação ferroviária de Kerman, o general Suleimani, vestido com farda de mártir soldado, mantém-se em guarda, mesmo depois de morto, do alto de um poste de iluminação, o mesmo morto por quem morreram vítimas incógnitas, enquanto nós nos entendemos com a deteção de metais, com o controlo de identidade e de legitimidade enquanto somente viajantes, e ninguém nos liga à bandeira do navio sequestrado em Ormuz e partimos na direção de Yazd, no que seria o último expresso das mil e uma noites. 
Yazd foi o fim abrupto da aventura persa, a nobre cidade de Yazd como descreveu Marco Polo, situada na interseção das rotas comerciais da Ásia central e da Índia. 
A cidade construída em adobe, tem opinião política e anseia por um futuro e, os telhados da cidade antiga, têm opinião e têm um diálogo esclarecido com os minaretes e as cúpulas das mesquitas, enquanto se fixam no horizonte das montanhas geladas que contrastam com os tons de adobe e deserto que rodeiam o presente deles. 
E voltei a sonhar  (sim, é verdade que sonhei abundantemente, não fossem os sonhos senão uma desconstrução absurda das realidades intensamente vividas no estado desperto)  com uma chuva intensa que tombava sobre os terraços de tijolo, com os gatos persas que se esgueiravam furtivos pelas torres de refrigeração e com a voz do Íman que voltou esta noite outra vez com o chamamento para a oração das cinco da manhã, tudo na mesma noite, no mesmo sonho e, para variar, deitado sobre um colchão macio.
O abraço sentido da gerente do hotel de Yazd já não coube no mesmo sonho porque o seu  choro compulsivo foi acariciado por um longo abraço coletivo que não foi suficiente para a consolar com o destino que Ala lhes impôs e sem a certeza de que o mundo lhes vai devolver a vida que elas merecem e que o regime lhes prometeu.





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