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terça-feira, 11 de março de 2025

Flashback #7 - O clube dos atletas vivos

 


Depois do anoitecer, nos imensos parques de Recoleta e Palermo, as estátuas dos heróis iluminam-se e os heróis da maratona acendem-se com a iluminação pública e correm para a glória e, neste clube do suor e do sprint, a única referência que une a mescla de atletas incógnitos é o fato de licra que liga as gerações, os sexos e uma alucinante vontade de correr.
Sempre ao anoitecer, pelos parques iluminados de Palermo e Recoleta, com a guarda de honra de Bartolomé Mitre, o primeiro presidente de uma Argentina unificada quando os escritores ainda se atreviam a ser políticos, Aristóbulo de Valle, advogado, colecionador de arte e político, Raoul Wallemberg e Mahatma Ghandi, os heróis da paz no mundo, Marcelo Turcuato de Alvear, presidente da Argentina numa altura em que os políticos já eram advogados, Maria Duarte Eva Peron, a diva dos descamisados, todos ao longo da mesma pista 
O culto das estátuas é o espelho passado do culto do corpo, portanto tudo encaixa
E no centro da Praça República oriental do Uruguai, bem junto a José Gervásio Artigas, ladeando a embaixada do Chile, de frente para parque Calistenia, a embaixada do Peru e ao monumento ao canto argentino, desvenda-se um oásis de meditação e silêncio recortado nos movimentos lentos e sincopados da uma aula de Tai-Chi, insensíveis ao rodopio da heterogenia dos corredores de fundo, as silenciosas divas espalham karma pela irmandade sul americana

domingo, 2 de março de 2025

Flashback #6 - A missa das sete e meia

 


Ao fim da tarde, invadida por uma noite de Outono precoce, desmontam-se as bancas da feira do bairro de Belgrano, porque afinal hoje é Domingo e a cidade despeja nas ruas tudo o que tem para vender.
A igreja da praça enche-se para a missa das sete e os santos carregam a fé nas escadarias exteriores, e os crentes rezam, indiferentes ao mercantilismo dos homens.
Às sete e meia nas Barrancas de Belgrano, os locais mudam se sapatos e saltam para o coreto entregando-se às milongas da nostalgia portenha, um ritual de fim de tarde dançante onde se troca de par para completar a experiência, profissionais e aprendizes numa mesma pista, sem excessos nem movimentos demasiado ousados porque, afinal de contas, respira-se uma alma de alta burguesia nesta praça de arvores frondosas e apartamentos de largas varandas, porteiros na entrada e muitos cães que passeiam os donos depois do jantar.
Do outro lado da praça e da linha de comboio, a cidade muda outra vez de país, de cultura e de povo (literalmente do outro lado da rua) e nasce a Chinatown, um bairro chinês muito sério – como seria de esperar de um povo tão sério – tão inacreditável quanto real, o arco dos dragões que incendiam a entrada da rua, os cheiros e os bazares, as multidões asiáticas que circulam pelas ruas sem automóveis, enquanto no jardim em frente a burguesia portenha dança o tango no coreto, como se não houvesse Argentina para lá da linha de comboio.
Na casa Saenz, respira-se o charme burguês da cozinha de autor, frango do campo ao forno no prato, um Malbec no copo e a lista dos fornecedores de origem certificada, afixada no corredor junto das casas de banho.
Às dez da noite no coreto de Belgrano já não havia música e apenas um casal de fantasmas treinava novos passos, às escuras
Às dez da noite já não havia dançarinos no Coreto, porque era Domingo e em Buenos Aires a alta burguesia também trabalha. 



domingo, 2 de fevereiro de 2025

Flashback #5 - Domingo

 


O Museu Moderno de San Telmo é uma viagem até “ao limite” um teste à existência de vida no bairro, para além da feira.
E, na modernidade minimalista do museu, que espreita, pelas grades das suas janelas, para a realidade mundana de uma manhã de feira no bairro, o interior refugia-se nas profundidades da mente, na expressão artística das vulnerabilidades do mundo exterior. 
Também na modernidade artística dos museus da cidade vive um predomínio dos criadores argentinos do século vinte e um que, tal como nos conturbados anos do século vinte latino americano, os artistas plásticos procuram, na tela e na pedra, contrariar a herança para além do passado, da nostalgia e de alguma sobranceria intelectual das elites letradas do século passado.
Para o século vinte e um dos artistas plásticos, o realismo desprendeu-se do mágico para se instalar em alternância no hiperbólico, no surrealista e na crueza teatral e performativa das suas vivências traumáticas.
Onde pululam os nossos abismos? – questiona-se o artista 
Ao longo da Calle Defensa, não se questiona a sustentabilidade dos recursos naturais entre bancas de rua, souvenirs, artesanato e roupa vintage, negoceia-se os preços com um fervor que compete com ritmo de desvalorização da moeda, porque na Argentina atual, tempo representa literalmente dinheiro.
Nem para todos.
A Mafalda, sentada no seu banco de jardim, tão sorridente e estranhamente quieta, não reclama com os avanços da populaça, que se pendura nela, para a fotografia ou para a posteridade e, se ela fosse um boneco animado não deixaria de ter opinião sobre este tempo.
Para o Che Guevara, restaurado e de cores garridas, agora na versão superstar na parede da Calle Lorenzo, emparedado atrás de um camião de mudanças, o empedrado da rua é apenas uma ténue recordação dos dias de solidão, que lhe gastava as cores mas que lhe mantinha a áurea de combatente, o único mural do planeta em que a reputação de Che coabitava em perfeita harmonia com um casal dançando Tango no empedrado decadente da cidade.
“Um duende não é um adorno, é como um amigo, portanto tens de dar um nome, falar com ele e dar-lhe de comer. É o teu primeiro?”
Sem ter a certeza de ter ultrapassado uma barreira linguística qualquer, vimo-nos rodeados de seres sem linguagem que trepavam os fios ao ritmo de uma concertina e uma mãe sorridente que emitia cartões de identidade com toda a seriedade.
Afinal, e apesar da sua aparente superficialidade mundana, o bairro ainda mantém vestígios de misticismo, poesia e concertina
E na Plaza de Mayo, nos confortes do bairro, um casal desafia o preconceito. Assim se reconstrói o Tango como um instrumento de inclusão.



domingo, 26 de janeiro de 2025

Flashback #4 - O regresso à troca direta

 

 

O parque centenário, onde a cidade acolhe os descamisados, onde as bancas trocam tudo o que o peso já não pode comprar e, no Sol obliquo da tarde portenha, não sobram os filtros nem a áurea aristocrática dos bairros privilegiados pela herança ou pelos costumes.
Troca-se tudo “Monigotes de miga de pan, caballitos de lata” e não há expetativas altas nem artistas de rua porque na feira semanal do parque centenário remendam-se vidas insuficientes / curtas e subverte-se a inflação com os princípios da troca direta.
Panelas por aros de óculos, ferramentas por brinquedos, roupa por calçado, trocam-se ciclos de vida em que, nada do que já não serve, fica esquecido nos sótãos das recordações e das aranhas, é uma economia de reciclagem total em que não se espera que os herdeiros limpem arrecadações, uma revolução de quem já não aspira à posse e se contenta com o usufruto temporário.
Para alguns, o Parque Centenário ao Sábado à tarde é a Meca portenha do pós capitalismo, sem inflação, moeda fraca ou incompetência de quem governa.
No parque Centenário sentem-se os subúrbios a palpitar, as gentes acotovelam-se no mercado sem lei, nos relvados pejados, nos lagos de repuxos e não há espaço livre para atletas que se espraiam nos verdes de Recoleta e Palermo. Aqui só há espaço para as famílias se espraiarem ao Sol, exibirem com orgulho a sua prole e as camisetas do campeão mundial abraçarem o lago que com todos partilham e os putos jogarem à bola, seja nos recintos oficiais seja nos remendos de relva que se esgueiram entre o Sol e as sombras.
Os pobres da Argentina, também eles se recusam a ceder à depressão 



quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Flashback #3 - Secando as roupas da velha Europa

 


Na avenida de Mayo, uma multidão assiste à festa da Calábria, com um palco cheio de crianças vestidas de trajes regionais que dançavam sons longínquos de distância, mas próximos de cultura, e a juventude no palco, mais pelo movimento e pela cor, do que através da música, procurava manter acesa a chama da nostalgia e o velhote sorria, como se nos quisesse explicar a razão da sua alegria, “A última geração de migrantes está a morrer. A nostalgia poderá então deixar de fazer parte da memória coletiva do povo” e hoje, como no passado, o sol da Argentina estava secando as roupas da velha Europa.
Uns quarteirões a ocidente, ainda na Avenida de Mayo, para lá da 9 de Julho, a avenida mais larga do mundo, tão larga que torna, por vezes, difícil a perceção da sua própria origem, a independência do país, instalou-se o Palácio Barolo, o primeiro arranha céus da américa latina, um sonho de um maçon italiano que acreditava que Buenos Aires era o último refúgio da cultura Ocidental, diante a barbárie da guerra na Europa que, segundo ele, conduziria ao extermínio da civilização humanista.
E por isso construiu uma homenagem de betão e vidro à Divina Comédia, investiu uma fortuna para a construir em tempo recorde, porque acreditava que a Europa iria soçobrar em breve, guardou três andares para ele viver, mas morreu antes do edifício estar pronto e antes da Europa sucumbir às trevas.
Na rua Hipolito Yrigoyen, não tão longe assim da Avenida de Mayo, escondido nas traseiras do Congresso da Nação Argentina vive o teatro Empire, uma alternativa teatral que, na segunda-feira à noite apresenta ao público sentado em mesas à volta de um palco que não se vê, um espetáculo de cabaret, que estende os braços à Europa, sobretudo no infortúnio e nos períodos de desorientação do velho continente.
Demencial (ligeiramente) segundo a apresentação, tendo como pano de fundo a ascensão do nazismo na Europa e a década infame na Argentina
Político, interativo com Brecht
Psicológico, a cobardia frente à ditadura do ódio, da opressão e do medo
Segundo o protagonista, mais vale um cobarde vivo que um herói morto, recordando os lugares tenentes, tão cruéis para os subordinados como submissos para os seus líderes.
Mas o protagonista vilão não é, afinal, um vilão é apenas um produto das circunstâncias e, no final, enfrenta o lugar tenente e torna-se num herói vivo.
Neste espaço sem geografia precisa, desfilam as músicas de Gardel e os poemas de Brecht como se o Oceano fosse apenas uma ponte entre os desenganos da alma argentina e as desgraças da velha Europa “Mais tarde, o sol estava secando as roupas da velha Europa” 
No final da peça o bem e a liberdade triunfa sobre o terror, o lugar tenente é morto no cabaret por uma horda de oprimidos e a moral explicita dos autores pretende simbolizar a esperança de que, no fim, e apesar dos momentos de insana loucura que assolam a Humanidade, de tempos a tempos, num qualquer final (ou apenas mais um intervalo) o bem sempre triunfa.
A peça só tem um Ato e portanto, neste palco inclusivo, a eternidade é apenas uma metáfora.
Não foi ainda esta noite que a última geração de imigrantes morreu.



domingo, 7 de julho de 2013

O voo da noite - Parte 5/8


Quantas vezes se debruçara sobre os balcões de check-in, era uma equação de variáveis indefinidas, perdidas nos horários trocados de uma massa humana que freneticamente se deslocava permanentemente de um lugar para outro, em complicadas manobras de segurança, bagagem, vistos e passaportes, novos tempos e novos hábitos de latitudes longínquas a que L. já se tinha adaptado

Incomodavam-lhe mesmo as facilidades aduaneiras europeias quando, cada vez mais esporadicamente, regressava ao velho continente.

E, enquanto abria mais uma vez a sua mala, sem se importar nem questionar com a sua utilidade, constatava divertido que, por estas bandas, as revistas e os controlos eram sempre desempenhados por mestiços profundos de feições carregadas e olhar frio e cortante, mas que as suas mãos enluvadas apenas acariciavam a roupa, sem entrar em detalhes, esperançados de nada de suspeito encontrar.

Mais um raio X na mala de um caixeiro-viajante da era moderna, adormeceu L. da atmosfera pesada, noturna e de luzes de néon amareladas de tão gastas, da área de embarque e transportou-o para a viagem de partida para as Américas.

Ou seria a de regresso, considerando as circunstâncias e a sua fulgurante ascensão na nova vida de (i) emigrante.

Corria atrás do Ocidente numa tarde que não tinha fim. Deixara a sua vida por resolver e, da cabine da aeronave lotada, olhava a profundidade temerária que ressaltava a turbulência em imagens de abismo.

Não entendia na altura se era o abismo do profundo mar azul e do deserto humano que se espelhava nos areais do Sahara e de Cabo Verde, ou apenas uma vida que se desmoronava num exílio fora de época.

Sentia-se apenas confortado pelo facto do Sol ser amigo, porque sobrevoa sempre as nuvens e por não vislumbrar fenómenos do fim do mundo como árvores plantadas no céu.

Imaginava Buenos Aires, como serão os cheiros da manhã nos mercados, nas cervejarias, será verdade o ritual do café sem pressas, como se fizesse parte da sua função no mundo observar os outros, imaginar as vidas de quem se atreve a passar, não há nenhum impedimento em construirmos histórias ao sabor lento do café e tinha saudades de Lisboa, como se o oceano me estivesse a esticar de forma intolerável entre dois mundos.

A realidade a dez mil metros de altitude, despertava-o para uma aula de ritual dos porteños e, como se fosse natural recomeçar a andar, aprendia como imaginar a segunda vida dos que o tentam lixar a vida

“Tal como eles não imaginam a minha segunda vida!”

Procurava entre a turbulência, as subidas e descidas e o apertar os cintos não me enredar nas nuvens, regressar à construção do meu mito sobre o novo mundo, calibrar a nossa expectativa, porteños de beleza impura que envolve as tradições submetidas ao Tango, os cheiros e as cores, as referências obrigatórias ao início do século XX, cafés e tertúlias, a intelectualidade e a ditadura, Borges e Gardel, o Déco que impõe ainda hoje o ritmo da modernidade

E as saudades das suas referências de passado em glória e tragédia nacional, um fado que nunca ouvia, pareciam-lhe agora intoleráveis enquanto sobrevoava, em descida prolongada, a colónia de Sacramento.

21:07, a tarde esgotou-se finalmente no início de noite e sentiu o céu vermelhão escuro na cauda do Airbus; Atravessara meio mundo sem mudar de língua e, no aterrar da segunda vida (ou seria o descolar da segunda e aterrar da primeira?), e assegurava que a visão argentina do universo hispânico, seria uma versão claramente melhorada do original.

Assim acreditava porque tinha atravessado o mundo nessa esperança

E. esperava-o na cidade do Tango….