Agora sobrevoava o
Atlântico Centro numa intermitência sonolenta, sentia o Sul pelas costas e
procurava espreitar entre as nuvens, à procura de referências, tarefa
impossível em pleno Oceano para um leigo em orientação marítima e profundo
ignorante em estrelas.
E exatamente no
prolongamento do Cabo Bojador – um olhar furtivo aos ecrãs de televisão da
cabine, comprovavam-no – uma mancha de luzes, num formato retangular familiar,
parecia flutuar sem direção precisa, seria um barco, um barco não era
certamente porque não coincidia a dimensão com os dez mil metros de altitude
anunciados no visor que lhe iluminava a face, a ele e aos duzentos e tal
passageiros que dormiam.
E como dormiam, não se
puderam aperceber que, naquela imagem de satélite azul, verde e castanha,
comprovava-se, primeiro de forma pouco nítida, depois mais claro e, alguns
segundos depois um contorno de luzes folclóricas qual arraial minhoto, a
profecia de Saramago, Portugal flutuava no Atlântico, mas sem a companhia de
Espanha,
Sem a companhia de
Espanha e de luzes bem acesas como não houvesse um cabo elétrico que liga a
nossa energia à Europa
Exatamente no
prolongamento do Bojador.
A agitação apoderou-se
de L. porque Portugal deveria ser o seu destino de regresso e, ao contrário do
retângulo bem real, que se afastava agora por detrás da traseira do avião,
sentia-se mais à deriva do que em qualquer um dos infindáveis dias em que
estivera exilado, porque nas vinte e quatro horas de cada um deles ele sabia
que a geografia se mantinha inalterável e que havia um lugar para regressar,
mesmo que fossem remotas as possibilidades de readquirir a sua vida, o seu
conforto e as suas raízes.
E, de repente, L.
entendeu tudo: voltava a casa, mas o país não esperara por ele, procurava uma
nova epopeia, renascia das cinzas numa inesperada e inusitada vocação marítima
antes que os filhos da Nação abandonassem a Pátria de vez e, tal caravela, tinha agora um novo
desígnio, recolher os portugueses pelo mundo, e L. não devia ter partido, ou
regressado, conforme a perspetiva.
Será que o país também
o viria buscar? Mas porque é que ninguém, naquele avião lotado, entendia que este
absurdo, tão tridimensional quanto um quadro de Dali, estava mesmo a acontecer?
Adormeceu a congeminar
como seria possível a ele, uma mente errante encerrada num corpo que ansiava
pela criação de laços, voltar a tirar partido desta oportunidade que o seu
surpreendente e caprichoso país lhe dava de novo, de ser viajante no conforto
do seu próprio espaço, beneficiando da energia e das oportunidades de novas
geografias promissoras
E L. sonhou o resto da
noite com P. o P de Portugal.
Quando Luís acordou,
não havia noite, antes um Sol que se escapava por debaixo das cortinas, nas
minúsculas janelas duma aeronave de nacionalidade lusa, comandante e
hospedeiras devidamente fardadas, e ele de mente absolutamente desperta de quem
vira a sua vida desfilar em algumas horas de sono profundo, embalado pelo som
dos motores…
Enquanto procurava
discernir o que, da sua desperta memória, era realidade ou sonho, abriu a
cortina e deparou-se com aquele extraordinário cenário, sempre renovado, a
entrada no estuário do Tejo, com o Sol nascente a varrer o rio, a margem Norte,
o bugio e a linha de Cascais.
Luís, quarenta e nove
anos, regressava de mais uma entediante viagem de uma semana de trabalho em S.
Paulo
Mas tudo o resto, que
se recordava como tivesse acontecido, só podia ser um sonho, porque, nas
histórias de verdade, os personagens têm nome e não uma maiúscula com ponto.
Mas parecia tudo tão
real que lhe provocou um arrepio na espinha, tão frio quanto uma madrugada de
sonos sobressaltados em altitude
Entre o alívio da
reconfortante e avassaladora vista aérea de uma cidade no sítio certo, e o
indisfarçável desconforto de um exílio sonhado, preferiu relegar para as
profundezas do cérebro o que sabia da teoria dos sonhos, um enredo de
premunições e memórias soltas de experiências e viagens passadas.
Sorriu sem
disfarçar, quando se recordou do país iluminado a navegar no Atlântico Central
e preparou-se para o regresso sonhado, no sentido literal, à pista da Portela.
“ O número
tentou ligar-lhe 3 vezes….”
Era Ana, que
ainda não se habituara aos atrasos do voo da noite!
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