Pedro atravessava agora a ombreira da porta
na incerteza de se encontrar com a sua sombra, mais uma noite de ressaca de
emoções mal curadas, mal amadas e desvanecidas no nevoeiro que imergia a
cidade, todo o ano, todas as noites, sempre com alguma pena de si próprio!
O telefone, como que por instinto, tocou!
- Boa noite! – Quem seria a esta hora?
- Como estás? – Uma voz levemente trocista
mas sem dúvida feminina – É mesmo contigo que quero falar. Mas dado que acabaste
de chegar, é melhor sentares-te, eu espero!
Não, não podia ser o reflexo dos torpores do álcool
barato, engolido entre duas baladas e uma competição quase obscena de olhares
insinuantes, rostos envelhecidos de mulheres solitárias, transformadas em
restos de uma revolução tardia, um jogo tão lúgubre quanto os trapos que as
cobriam. Era assim a noite na cidade, no pequeno bar escondido entre ruelas e
trepadeiras, pátios cercados de vedações e um portão que insistia em ranger,
degraus esgotados pela erosão dos séculos, retorcidos como o corrimão de ferro
que empurrava os sonhadores para as luzes e para o fumo, um balcão corrido até
ao fundo, mesas cheias de gente e histórias que se contavam em voz de tambor, o
acompanhamento sincopado das baladas do jogral, viola no colo e notas bem
puxadas ao sentimento e à atmosfera que Pedro jurava em voz alta já ter visto
num filme qualquer, com muitos anos, sempre num qualquer antes da guerra, Paris
no seu auge, como uma premonição de euforia antes que o mundo se consuma numa
carnificina qualquer!
A voz era uma assombração mesmo real pós meia-noite
com timbre de Cristina, definitivamente não Maria, talvez Paula ou Isabel, mas
bolas como é que se podia ter uma voz daquelas àquela hora, simultaneamente tão
rouca e profundamente (profusamente?) límpida?
- Devo pressupor que é engano, ou foi um Anjo
que regressou à terra? – Respondeu Pedro, arrependendo-se antes de acabar, com
este som estridente que ele não tinha conseguido controlar (pluf, saiu!), tão
pretensiosa e desastrada.
Mas a voz não se sentiu incomodada e riu sem
pressas, longamente, deixando transparecer de uma forma clara de quem era a
iniciativa e que ela já havia decidido os seus atuais e próximos passos e
portanto tudo era permitido a esta jovem, não lhe competia a ele agradar!
- Como sabes que acabei de chegar?
- Sente-se o teu respirar ofegante de quem
entrou a correr em casa!
Sem perceber qual o grau impreciso em que
estava a ser gozado, Pedro decidiu enfim sentar-se (deixar-se cair) na cadeira
de lona vermelha comprada num bazar de bairro, um estuário de quinquilharias no
seu preferido refúgio magrebino de Sebastopol!
- Tem nome, a voz? – Atreveu-se, inquieto com
esta intromissão na sua concha desconcertante, (e nos últimos tempos, também
desinteressante) no seu exílio urbano, independente mas deprimente, apesar de
já ter aprendido a viver os tristes, gelados e nublados fins-de-semana do Norte
longínquo. E a intensidade do incómodo inicial era tão evidente que nem lhe
ocorreu a ele que podia ser um interessante engate nem a ela lhe soou ao alarme
da rejeição, uma espécie de sensação “ que tipo de gajo será este que nem
curiosidade aparenta? Ou será que lhe cheira a mãe solteira de um filho problema
assim só pelo som da voz…ou pelo cheiro! Bolas não há cheiros por telefone…julgo
eu!”
- A voz tem obviamente nome…para quem merece!
– O ataque frontal e impiedoso parecia-lhe a terapia de choque ideal para um
empedernido e solitário macho, ainda sem história, sequer!
O aturdimento desconcertante em que Pedro
tombara, deixara-o sem fôlego no preâmbulo de uma fábula intemporal, em que
todos os animais se entendem numa espécie de esperanto da natureza, seja qual
for a selva, o tempo ou a história!
- Como é possível uma voz cristalina e em
português no centro deste mundo tão gaulês? – A sua súbita e idiota perceção
do improvável não deixava de ser cómica, não fosse a hora absurdamente tardia e
a falta de discernimento alcoólico que envolvia a sua mente – Pressuponho que
não é o acaso…
- A teoria das probabilidades joga a meu e a teu
favor. Somos muitos milhares de mentes exiladas…
- O exílio não é uma escolha, e vivemos numa
década de escolhas múltiplas. Parece-me uma palavra levemente desajustada…ou
demasiado sugestiva! Talvez seres emigrados seja mais real, porque já não
existem causas assim tão nobres que justifiquem o exílio…
- …só quando não é um estado de
desajustamento permanente, ou simplesmente um estado de espírito!
Pedro não entendia esta provocadora
insolência, uma familiaridade tão óbvia que só podia ser um sonho, e por isso
mesmo hesitou e remeteu-se a um silêncio defensivo e comprometedor.
- Acreditas mesmo que não existem causas
suficientemente nobres, que justifiquem o exílio, mesmo que aparentemente
voluntário? – A insistência da voz estimulou a imaginação de Pedro, que definitivamente
não lhe apetecia expor o seu íntimo, tão tarde, tão noite, tão cedo e
tão-somente a uma voz.
- Para mim tens voz de Cristina!
- Cristina seja!
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