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sexta-feira, 10 de maio de 2024

Albuquerque já não mora aqui

 


O fim de tarde na marginal de Ormuz, quente no ar, laranja no horizonte e as crianças que brincam na praia, sob a supervisão das matriarcas.
É com lassidão que Ormuz se despede do Ramadão e sentimo-nos dentro de um filme, do filme das terras distantes, ventos do golfo, especiarias do estreito, véus que esvoaçam sobre a ténue linha que separa a realidade da margem e as aventuras sugeridas pelo horizonte. 
Na tarde da ilha, há também uma realidade de felicidade paralela com cores e cheiros que são tão diferentes que não se chegam a estranhar. 
Há uma descontração não contida nesta insularidade da República, talvez porque nas rotas do comércio, prevalece a tolerância que se alimenta da vontade de ligar culturas e absorvem-se os ventos que encrespam os mares e, nessa tradição marítima, valoriza-se a indolência das pausas. 
Há uma nova irmandade social que absorve os novos sabores de uma música iraniana que recupera os sons tribais com uma elegância muito oriental, conversa embalada pelo vento fresco que entra nos cafés da marginal, as mãos que se tocam com uma serenidade sentida, tez morena, olhos de cores penetrantes, eles de barbas escura e cuidada e elas de lenços leves, padrões que se inventam na mitologia persa e de cores quentes do mar e do deserto. 
E, em Ormuz, a juventude urbana, serena, culta e sofisticada, mas sem cedências das suas raízes que, por aqui, encontram espaço para o lazer e pergunto-me o que esta juventude não poderia fazer quando chegar o futuro deles. 
E as histórias fluem nos becos de uma desordem poeirenta e de cimento à vista, próprios de um subúrbio pobre, descuidado e esquecido antes da chegada do turismo, apenas para verdadeiros conhecedores. 
E as personagens revelam-se ao longo da promenade, o persa que joga o jogo da macaca no passeio para meter conversa connosco e se mostrar feliz por conseguir comunicar, sem que haja uma linguagem comum. 
O outro persa que jura que foi contrabandista quando a ilha só tinha mil habitantes e a alternativa à pesca era o mar dos outros. 
Na última noite do Ramadão, recriamos a flor de lótus, sentados sobre as carpetes que se espalham de centros de mesa de palha, de pratos de camarão embebido em arroz e especiarias e as mil e uma noites das arábias com sons do Sahara, uma demonstração da corda do fogo e sons de bandolins com ritmos tão próprios que somos incapazes de traduzir. 
À noite, dormindo no chão, como os bandaris, sonhamos com o fim do Ramadão, a aldeia inteira reunida à volta de mesas de madeira montadas nas rotundas, todos os sete mil e quinhentos habitantes da aldeia que circulam rua acima, marginal ao longo e o sonho começa quando o corpo se habitua ao estrado duro e não acaba, nem mesmo quando o Íman faz o chamamento, a noite ainda  não clareou e o indecifrável apelo, seria angústia, cólera ou fé, não é óbvio, só interminável e muito perto, e no sonho comecei a fazer contas, estaria a trovoada perto não havia imagem, só havia som.
Deixamos para o fim o encontro com as nossas memórias, no forte português, sem que nos tenhamos sentido vez alguma, prisioneiros de uma visão demasiado contemporânea da nossa história. 
Afonso de Albuquerque já não vive em Ormuz e a aldeia não guarda quaisquer memórias hedonistas (nem nenhuma outra qualquer) da vontade de nos misturamos com os locais e criar uma nova raça, mas os vestígios de um passado audaz misturam-se na argamassa que ainda segura as paredes do forte e da aldeia. 
E, tal como em Persépolis, há boas vibrações quer na terra quer no mar. 
Os vestígios do forte sofreram da fúria dos elementos, os ventos cruzados a Norte e a Leste, um campo de futebol com vista para mar e balneários nas casernas, até alguma autoridade ter expulsado os atletas e iniciado a reconstrução das muralhas. 
Lento, mas reconfortante a ideia que a memoria não desaparecerá e a igreja subterrânea do forte permanecerá intacta, as colunas góticas afugentam os turistas que por aqui circulam em dia de feriado. 
Cento e cinquenta anos de relativa paz com os persas e de uma cadeia de entrepostos que nos abriu o comércio com o Oriente, é uma proeza nossa. 
Sem visões descontextualizadas, complexos mal resolvidos, descoberta ou expansão é indiferente a semântica, não há visões coloniais, apenas a verdade das coisas. 
Não escorreu nenhuma lágrima para a água suja, que não poupa as tartarugas nem as veleidades balneárias de um país que não se banha senão vestido, mas do topo da muralha, com vista circular para os mares, os ventos cruzados e frescos causaram um discreto arrepio de espinha.
“Mágico", sentenceia uma voz grave, uma tez escura, uma pele lisa, uma máquina fotográfica de um profissional e mochila amarela de quem caminhou longe das montanhas do Norte para chegar até aqui, e chegou.



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