Pesquisar neste blogue

sexta-feira, 24 de maio de 2024

Voando sobre os cumes gelados da Anatólia

 


A hospedeira iraniana da Anadolujet perguntou porque é que saímos, tinham receio que Israel bombardeasse o Irão? 
Um riso entendido, sofisticado e incrédulo como se não acreditasse que alguma coisa pudesse ter corrido alguma vez mal. 
Parece que a senhora se ia casar no Porto, era de Tabriz e tinha muita curiosidade de saber por onde tínhamos andado, " o Sul é a parte mais linda do país" e a Isfahan porque não foram à Isfahan e porque se foram embora e porque não vieram de avião de Tabriz que tem voo direto para Istambul. 
Tudo isto enquanto subíamos para o avião em Igdir, na escada traseira do 737- 800 que nos fez voar sobre os montes gelados da Anatólia Oriental 
A história completa ninguém a ouviu porque ela a foi contando aos pedaços a todos nós à medida que cada um de nós entrava no avião. 
E, adiante, interpôs-se uma confusa troca de lugares. 
O avião partia de Igdir, uma cidade perdida nos confins da Anatólia Oriental cercada de montes nevados e de fronteiras, a Arménia a Norte e o Irão a Leste, e de barreiras na estrada que procuravam contrabandistas e outros rebeldes, afinal de contas não há fronteiras para a vontade de controlar a vontade dos outros.
E o destino final, quando a tarde já fosse noite, seria a grande capital da interceção dos mundos, e como teria a milenar Istambul amortecido os últimos e violentos choques entre os hemisférios?
E apesar das reflexões que este tema merece, só conseguíamos pensar na última capital do império romano por mais de dez séculos e a do império otomano por mais seis, como um gigantesco barril de cerveja capaz de tirar a sede a milhões de deslocados de regresso ao purgatório, o reservatório de água a partir do qual os romanos do Ocidente, saciavam a sede a uma população que, apesar da sede, guardou este segredo, dos invasores Otomanos.
A caminho de Istambul, continuamos a pensar que existe, ainda hoje, e apesar de hoje, uma cumplicidade ocidental da velha Constantinopla para com todos os vagabundos que cruzam o Bósforo a caminho de um qualquer extremo do mundo.
Portanto, os sons do Islão, temperados pelo Mediterrânio, enquanto embrião das civilizações da Antiguidade e berço da tradição humanista que (ainda) sustenta a modernidade ocidental
Certamente não nos deixariam morrer de sede.
Viajamos rodeados de sábios e, por isso mesmo, aprendemos que todos temos um lado negro, mesmo os povos que nos adoram, os polícias que nos controlam, os mullahs que nos ignoram, os turcos curdos que nos procuram explorar e os curdos turcos que nos contam histórias que chegam a encantar.
O nosso lado negro revela-se com a  falta de um bom vinho tinto a regar o kebab e o lado negro deles revela-se  na transparência com que ostracizam as mulheres, provocada pelos sempre os mesmos homens que se impõem até se cansarem de si próprios e, elas muito cobertas e olhos em baixo, só um grande buraco negro mental, uma espécie de embrião de vetor único, seja lá o que isso for, mas que Deus exige um mundo assim tão negro quanto as vestes que as cobrem? E nem os curdos, indesejados pelo universo das estrelas que brilham no Islão, pelo excesso de irreverência e de vontade de independência, parecem libertar-se da maldição a que parecem querer condenar o sorriso das mulheres de cabelos ao vento.
E a aproximação ao Ocidente, não foi tão reconfortante quanto as nossas famílias achavam que seria, por um lado os infiéis ainda não tinham bombardeado o Irão, afinal de contas essa era a maior das preocupações dos ausentes, depois porque  o oriente próximo ou médio, quando vivido de perto, no meio das pessoas, é uma prova viva de não existe tal coisa como hemisférios opostos, e porque o presente parece querer confirmar a História, em que os Persas tinham um espírito mais universal que os Otomanos. 
E, antes de nos aproximarmos do Ocidente geográfico havia Dogubayasit, uma outra realidade paralela em que os contrabandistas pareciam ser gente de palavra e os outros esfregavam as mãos, nada parecia garantido, nem mesmo o acordado, e só através de ruidosas insistências, conseguíamos que eles nos prestassem atenção.
Exceto o vendedor de chá no mercado da fruta que, em hora de fecho e de crepúsculo, era generoso nas doses de chá que mantinha quente no gigantesco fogão, ou alambique já não me recordo da forma, apenas da lenha alimentada a lenha , a treze cêntimos o copo, entre as bancas da fruta , os bancos e as mesinhas de plástico, a sombra da mesquita que abraça a praça e não se esquece, nunca, das horas de chamamento, sem pressas porque enquanto nos mantínhamos sentados, continuavam a tombar  a cafeteira sobre os nossos copos, em silêncio mas sempre com um sorriso de compreensão que não aumentava de preço nem de impaciência à medida que a noite afastava as hesitações do crepúsculo para lá do horizonte.
Éramos, pois, uma comunidade de deslocados, e Istambul acolheu-nos com uma diligente indiferença de uma grande metrópole habituada a não perguntar e a aceitar todas as origens como uma inevitabilidade geográfica, e não estranhou que três ocidentais, com sons do deserto nos seus ouvidos orientais, se tenham sentado numa esplanada em final de turno, muito depois de extinta a hora de jantar e tivessem pedido três copos de vinho branco e um prolongamento de prova europeia de futebol, com penalties e tudo.
Depois disso, quem quer dormir na noite morna quando ainda cheira a peixe frito nas margens da ponte Gálata e os vendedores de carteiras não desarmam o estendal porque acreditam que não há horas melhores (nem piores) para comprar e vender na confluência dos mundos.
Com as cúpulas das mesquitas cobertas de luzes e a Santa Sofia vestida de rosa, como uma afirmação de diferença, como se dez séculos de uma história de religiosidade moderada se pudessem apagar por um fundamentalismo interessado do novo Sultão Turco.
Mas nem tudo no mundo é um conflito civilizacional ou religioso
Enquanto repetíamos o nosso copo de vinho, tal como quando tínhamos bebido o último shot de vodka numa esplanada de Bucara,  não conseguíamos esquecer as palavras de Omar Khayyan, matemático, astrónomo e poeta do século nove da grande Pérsia, daquela que ia para além de Samarcanda, um discípulo de Maomé que ninguém no século nono persa ousava duvidar e que, mesmo antes de cair em desgraça, afirmava, recusando as honras que ele sabia serem efémeras e inúteis, “ A vida de corte não é para mim; o meu único sonho, a minha única ambição é ter um observatório com um jardim de rosas e contemplar perdidamente o céu, com uma taça na mão e uma bela mulher ao meu lado”
Bom, àquela hora da noite só as belas mulheres rareavam debaixo dos céus do Bósforo.



Sem comentários:

Enviar um comentário