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domingo, 12 de maio de 2024

Nos confortes da Rota da Seda

 

A fortaleza de Bam resistiu mais de 2500 anos até que, em 2003, um mortífero terramoto a destruiu a ela e a mais de 60,000 vidas. 
Foi um momento tão aterrador para os habitantes do oásis de Bam como para a memória do povo iraniano, porque a fortaleza de Bam, a maior fortaleza de adobe construída no mundo, testemunhara o nascimento da nação persa com os Aqueménidas, terá sido construído no formato hoje conhecido na última dinastia persa antes da invasão árabe e foi-se adaptando até ao século dezanove com a dinastia dos Qajgar, como um farol de segurança para os habitantes e viajantes ao longo dos caminhos iranianos da grande rota da seda. 
Por se tratar da memória de um povo, a República Islâmica tem feito, nos últimos vinte anos, um esforço intenso de reconstrução do forte, até porque as derradeiras memórias do lugar são definitivamente islâmicas, apesar da República nem sempre lidar bem com as memórias das diversas dinastias persas, mesmo islâmicas, mesmo xiitas. 
Por isso recuperou-se prioritariamente todos os vestígios da narrativa xiita e seus mártires, como o terceiro Íman Al-Hussein Ibn Ali, o Senhor de todos os Mártires, que terá sido assassinado pelas tropas do califado, um sempre intruso para todos os Persas
A visão da fortaleza de baixo é arrebatadora mas, como em todos os locais históricos da Asia central, a magia provêm muito mais do imaginário do que se passou (e do que passou por) nestes locais, as caravanas provenientes da China, os guerreiros da Mongólia, os árabes da península, uma sucessão de imagens históricas carregadas de epopeias, mitos e realizações notáveis que permitiram as populações lidar com a agressividade dos elementos, na regularização dos fluxos de água e na climatização, e que permitiram que as zonas mais inóspitas do mundo fossem permanentemente atravessadas por todos os povos que, ao longo dos séculos, abriram os horizontes do mundo.
Por isso, a visão de cima para baixo da fortaleza de Bam é ainda mais arrebatadora, porque é no palmeiral que nos revemos na História do que por ali passou. 
Quando percorremos os corredores, os pátios, as avenidas e as praças desta gigantesca construção de adobe, a fortaleza de Bam, entramos decididamente num novo capítulo da história da Ásia Central que começou no século IX, depois dos dois séculos de silêncio impostos pelo califado árabe aos descendentes dos Persas, mais do que um novo Capítulo, foi o renascimento do seu Império, uma força crente no Islão que imergiu dos destroços provocados pelos invasores, e que durou até emergirem as potências marítimas europeias. 
Por isso em Bam entramos diretamente nos confortes da rota da seda.
E na autoestrada para o norte, a mítica rota comercial principal da Pérsia milenar, proliferam os locais de descanso, de oração e de comércio, especiarias, frutos secos, e famílias inteiras a viajar para norte, à procura do que não há no Balochistão e, apesar da modernidade insonsa destes lugares, mantém-se a mesma curiosidade pela diferença, a mesma vontade de partilhar emoções e o lugar onde nascemos e, mesmo que não haja códigos de linguagem idênticos, há uma língua comum de sentimentos, sempre selada por muitos gestos, uma limitada seleção de nomes próprios e uma muito inclusiva fotografia de grupo. 
Os encontros com a diversidade dos povos estenderam-se ao deserto de kaluts, o território mais inóspito da terra onde o Balochistão de tez mais escura e olhar profundo nos estendeu a mão e a alma de fora do seu Peugeot branco, mas de dentro da sua túnica branca, mão no peito, “Salam” nos seus lábios e, com um sorriso de felicidade sincera, entraram no automóvel e aceleraram no meio da terra batida, monte abaixo levantando uma enorme poeira de linguagem comum. 
Ignorando deliberadamente o costume dos comerciantes árabes, que apagavam os trilhos dos comerciantes de outras paragens, com lama para purificação do contacto com os infiéis. 
E enquanto devorávamos o ensopado de borrego e batata, ao jantar na casa da aldeia e do oásis, éramos embalados por uma numerosa família de acolhimento que distribuía sorrisos e empatia pelos viajantes que percorrem a poeira, em malgas cheias de caldo e deixámo-nos seguir na noite por dois cães de corpo sofrido, mas olhar doce e família feliz. 
Na solidão do oásis deserto, vagueiam as sombras dos fantasmas cobertos de lençóis no pátio do imenso Caravansarai, hoje vazio e abandonado, ervas daninhas e os restos da canalização da água dos rios temporários, mas há um burburinho que ecoa das lendas das mil e uma noites. 
Será mais uma miragem dos ventos do deserto ou apenas um eco espelhado das estradas pejadas de carros e de gente que percorrem incessantemente este país de norte a sul? 
Adormeci tolhido e sem resgatar qualquer resposta – mais uma vez guardaram para nós os estrados mais duros para os momentos mais puros - mas senti, no ombro dorido, o prolongado abraço de um povo, que suspeito, terá os mesmos sonhos que os nossos. 
Antes de adormecer, um banho de estrelas varreu o céu que nos servia de manto e quando acordei, já não tinha dúvidas.



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