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quinta-feira, 16 de maio de 2024

A Arca de Noé

 


Atravessamos a fronteira e a perspetiva histórica muda, de um lado as raízes do império persa, doutro o poder e a pompa do império otomano.
Parece simples, mas não é, porque o império otomano surge de uma fração dos impérios persas árabes após o vendaval das invasões mongóis, resultando da cisão das dinastias Turcas. 
E, nesta encruzilhada histórica, geográfica e cultural de curdos, turcos, persas e arménios, não há fronteira que garanta a independência de fontes e de espectros culturais. 
E em Dogubayasit, a primeira cidade no Curdistão Turco, a fronteira era apenas uma mera formalidade na mesma fita de cinema mudo em que nos tornávamos figurantes, os homens no café "sempre os mesmos homens nas mesmas ruas" mulheres e homens sempre separados nas ruas, elas tão cobertas como no interior curdo do outro lado da fronteira e, naquele momento, as cidades do Irão pareceram-nos um oásis de liberalismo social e igualdade de género.
Atravessamos uma fronteira, mas não há álcool ao jantar e as diferenças só se revelam quando ligamos o som ao filme e há nova linguagem gestual em cada interação com este novo povo geográfico, os turcos não têm tempo para a bondade dos iranianos, contam muitas estórias e abominam o preço fixo, previamente acordado. 
Afinal, atravessamos uma fronteira, a do valor do tempo e a do valor do dinheiro. 
Há provavelmente um denominador comum num povo que é o mesmo, apenas siameses precocemente separados à nascença por países que eles nem reconhecem, um povo único dividido entre o apelo do Islão e o desprezo que o Islão lhes dispensa. 
E, para quem os olha com uma curiosidade de quem está de passagem, não há diferenças relevantes entre uma república islâmica e uma democracia musculada, porque as barreiras policiais e a presença militar diferem apenas no alfabeto e estes gémeos continuam a preservar as suas origens comuns através do contrabando que é uma fusão de conveniências, porque é uma forma rentável de combater a autoridade dos estados e de manter os laços clandestinos entre eles. 
Por isso, na única avenida pedonal de Dogubayasit, a manhã tardia está pejada de homens ao telefone, contrabandistas que trocam mensagens na avenida principal, mensagens subversivas ou apenas comerciais só eles sabem e a polícia de Erdogan gostaria de adivinhar, mas a necessidade de ser eleito obriga a manter uma autoridade menos intrusiva que se limita a passar de carro patrulha, sem se intrometer na avenida pedonal, avisando da sua presença com mensagens por altifalante, e não interferindo com as horas de chamamento de Alá. 
E também entre os homens comuns, seja de um país diferente, de um povo diferente ou de uma religião diferente, também por aqui, como também por todo o Irão, a perceção que eles têm dos vizinhos, dos rivais e dos propalados inimigos é tão diferente da propaganda oficial dos regimes, há uma suavidade respeitadora como falam dos méritos "The world is all the same the problem are the politicians" sem falsos pudores da lógica das sanções "se não usarmos esses medicamentos todos de Israel morremos" e com uma ironia mercantilista sobre os disparates Ideológicos "Thanks God Ayatolah “ pelos drones enviados para Israel" assim vocês vieram até nós, "se posso comprar bom, porque é que tenho de comprar imitações? " 
Também no palácio Ishak Pasha, o último dos três sultões que concluiu esta obra de noventa e nove anos, não há fronteira que garanta a independência de fontes e de espectros culturais. O palácio, agora candidato a património da UNESCO, tem várias caraterísticas distintivas, para além da sua localização com vista deslumbrante sobre o vale, a cidade e os montes de neves eternas, foi construído na confluência de todos os impérios do centro, de todas as rotas comerciais da então quase extinta rota da seda e, segundo os especialistas, com influências da Anatólia, Arménia e do Norte da Mesopotâmia. 
E, mais uma vez descalços, sob a abóbada florida da mesquita do palácio, um frio que nem o Sol exterior nem as alcatifas interiores nos conseguem fazer esquecer que estamos rodeados de neves eternas, sentimo-nos esmagados pela incredulidade que sempre nos assalta na Ásia central, como é possível que os locais de aparência mais remota do planeta inteiro tenham sido, e sejam também , as mais complexas e fascinantes encruzilhadas históricas, geográficas e culturais, instáveis placas tectónicas de um mundo em ebulição, um terramoto que se adivinha a qualquer momento, seja por causas naturais ou humanas. 
A fugir do dilúvio que provavelmente não vai acontecer, pelo menos hoje, saltamos para a arca de Noé, nós como os escolhidos para representar a natureza humana, entre um zoológico de seres que pretendem representar a diversidade do mundo animal, perante Deus. 
O local, no monte fronteiro, ou na base do bíblico monte Ararat, esse sim, vivo e repleto de neve, não é muito convincente quanto à verdadeira natureza da lenda, afinal de contas o livro sagrado fala de um homem que viveu novecentos anos e que foi pai aos seiscentos, mas um discreto investigador de nacionalidade duvidosa apresentou uma teoria sustentada pelo quase invisível centro de interpretação, sem visitantes e com um zelador quase desmotivado. 
Afinal de contas, tudo terá acontecido cinco mil anos antes de Cristo, muito antes da fé humana ser capaz de venerar um único Deus. 
Como diria mais tarde o Jorge, o viajante, a lenda completa o local, nada como um mito cientificamente provado, para acentuar a magia do extraordinário monte Ararat. 
A forma da encosta bem poderia ser a da arca de Noé petrificada pelo tempo, pelas neves eternas e pela fervorosa crença de que se pode salvar o mundo do holocausto, escolhendo criteriosamente dois exemplares de cada espécie e fazê-los flutuar sobre as águas revoltas do mundo, em acelerada rota de colisão com o extermínio. 
Mas, naquela tarde, diante do silêncio do vale e na sombra do magnifico monte Ararat, todos quisemos acreditar naquela visão da arca de Noé, talvez porque todos queiramos acreditar num final feliz. 
No vale, os cães que guardam rebanhos têm coleiras com pontas de ferros aguçadas no pescoço, para os proteger dos ataques dos lobos e, no local do nosso picnic, com vista privilegiada do monte Ararat, uma noiva chamada Cruela, posa com fastio para as fotografias da praxe com os noivos, as sua damas de honor e um bando de turistas infiéis, numa espécie de Resort que permanece inacabado há nove anos. 
Nada que se compare com o tempo que os três sultões demoraram a construir o seu palácio, nem com o tempo em que a arca terá petrificado na encosta do monte, nem com a origem do monte Ararat, no alto dos seus mais de cinco mil metros de altivez e orgulho.
Acho que ainda não é hoje que as placas tectónicas vão fazer tremer a terra outra vez! 



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