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domingo, 9 de junho de 2024

Memórias reinventadas da Gran Via

 


Madrid é a única capital do mundo das nossas fronteiras, para a qual podemos partir e chegar por terra sem que o sol nasça e se ponha na mesma viagem. 
Já era assim na minha infância das fronteiras, daquelas que já não conseguimos explicar aos nossos filhos.
Acordávamos com o nascer do sol, corríamos pela estrada nacional fora para sermos os primeiros na fila que dava sempre acesso à Extremadura deles, nunca nada nos impediu, não havia razão para impedir, então se era sempre garantido que ias passar então porque é que havia fronteira, pai, afinal já nem me lembro como era ter o teu nome de criança no passaporte dos meus pais. 
E chegávamos sempre antes do sol desaparecer, era garantido que desceríamos a Gran Via a partir da praça de Espanha, décadas antes da cidade afundar os seus acessos nos túneis da escuridão e do progresso, sem ordem prévia, autoestradas onde haviam antes filas de fronteira e rituais de travessia e os  túneis à hora de almoço, onde antes persistiam os caóticos fins de tarde do trânsito da metrópole da ibéria, o primeiro lugar a partir da nossa  fronteira que cheirava verdadeiramente a cidade grande. 
No resto, a mesma realidade de sempre, estamos destinados a fazer de Madrid a nossa porta para as realidades paralelas que o mundo dos outros nos oferece ou, conforme estávamos habituados a acreditar, nos ensina. 
Uma espécie de antecâmara do resto do mundo, e não é uma demonstração de subserviência aos Bourbons ou de inferioridade em relação à dimensão, é apenas uma inevitabilidade geográfica.
E, por ser assim uma espécie de vizinho truculento, com uma arrogância proporcional ao tamanho do seu quintal, parecido no temperamento, muito diferente na forma e no desprezo com que lida com o individual e com os pormenores ( afinal de contas, serviço ao cliente e pequenas séries nunca foram o seu forte) nós consideramo-nos no direito de chegar sem avisar, não descalçar os sapatos à entrada e revelar uma absoluta ignorância pelos pormenores da História deles, pelo menos das partes em que não surgem como vilões nos compêndios de história da escola primária. 
E acreditamos que seremos sempre perdoados, se tapearmos sem pudor ao som de um qualquer flamengo com sabor a presunto. 
Por isso viajar para Madrid com um detalhado programa de visitas culturais ao âmago da essência castelhana, espanhola e continental é quase um refrescante reconhecimento tácito da liberdade deles poderem existir, porque havemos nós de reconhecer a importância da realeza espanhola, se eles desdenham o nosso afã republicano, mesmo que nas origens, sejamos todos primos, como resultado de séculos de casamentos reais de conveniência. 
Mas hoje decidimos viver Madrid como se ela não fosse o purgatório do mundo. 
Por isso decidimos aceitar que Madrid também é mundo com vontade própria. 
Afinal de contas, todos os preconceitos se diluem no tempo. 
Como os ressentimentos, aliás.
E as minhas memórias de Espanha são já antigas e temperadas pela diversidade do resto do mundo. 
Por isso, naquela tarde de feriado português, recém-regressados do planalto de Castela, e depois de um reconfortante repasto revestido de tortilha e regado de cerveja local, porque não são só as flores que precisam e carinho e água, estávamos prontos para um regresso ao século passado e às memórias de Espanha e, agora que reabilitámos Espanha e lhe apagámos o rótulo de apeadeiro da Europa. 
O pintor Chagall é um alienígena nestas disputas ibéricas, russo e judeu, francês por afinidade e alemão de inspiração e uma mente permanentemente exilada, foi um mau século para nascer judeu russo e viver na Alemanha, “non son tiempos proféticos", claro que esta poderia ter sido apenas uma interpretação do curador do museu da Fundação Mapfre, um Mecenas profissional que têm, pelos vistos, uma opinião contundente sobre as misérias do mundo. 
Mas não, a frase é um desabafo do artista que, em 1925 escrevia numa carta que teria hoje, sido viral “o tempo não é profético, reina o mal” 
“A exposição apresenta a obra do artista à luz dos acontecimentos históricos de que este foi testemunha, convertendo-se assim na primeira leitura completa da obra desde a perspetiva da sua tomada de posição e do seu compromisso sociopolítico de cariz humanista”
E, sem preparação prévia, depois de trinta e cinco minutos a caminhar pela Castellana acima, entrámos no século dos profetas torturados e no grito de liberdade que abafou as almas mortas nos conflitos sangrentos que o fustigaram, muito mais do que um título de uma obra do seu compatriota Gogol que, nos anos vinte, Chagall tinha ilustrado.
Nos salas dos pisos superiores da Fundação do Mecenas com gosto e opinião definida, valoriza-se o contraditório, nas cores explosivas de Chagall que retratam o exilio e o sofrimento da primeira metade do século vinte enquanto nos pisos inferiores impera o preto e branco das fotografias de  Christer Strömholm, um fotógrafo e educador sueco que não necessitou da cor para espalhar a esperança do renascimento humanista na segunda metade do século, a Europa voltou a ter tempo para a intimidade e para a diversidade, e nem a escala de cinzentos que povoa os universos de Strömholm, limita a sua sensibilidade perante o sofrimento humano.
(De novo regressados à rua e às cores vivas do presente)
Enquanto a nossa revolução fazia cinquenta anos do outro lado da fronteira, e só havia cravos vermelhos nas ruas da capital, a Madrid trabalhadora alvoraçava-se com a proximidade do fim da tarde nos bairros a norte de Praça Cólon, um bairro que não discriminava nem as bolas de pelo, por vezes confundidos com cães de companhia que farejavam as esquinas e puxavam os reformados de volta para as recordações de quando deixaram marca no mundo, nem os executivos de hoje, em dia de formação, que se desfaziam em convívios corporativos à porta das torres de vidro, enquanto não transbordavam os bares da movida espanhola, sim a norte da praça Colon, não vivia a Madrid monumental, coabitavam as avenidas amplas de linhas direitas de quem entende os números dos banqueiros privados com os quarteirões de um discreto bom gosto, uma grisalha classe média que, tal como os banqueiros, preferia a descrição à notoriedade das ruas do Bairro de Salamanca.  
Aceitar que Madrid é um mundo com vontade própria, no âmago da essência castelhana pode ser cansativo, não que a diversidade seja cansativa, mas pode ser vertiginosa.
Na casa museu do pintor espanhol Joaquim Sorolla, somos subitamente sugados para o passado, como se o jardim plantado de árvores com história e cercado de uma modernidade construída retirasse o dramatismo e os sons do presente, e nos preparasse para o universo deste pintor que se realizava com a representação da vida quotidiana da Espanha dos fins do século dezanove e da generalidade do séculocvvinte, capturando a luminosidade, as cores e a atmosfera do Sol nas áreas costeiras do país e das pessoas que irradiavam felicidade pelo mundo ser apenas simples e tranquilo.
Retratos de uma Espanha superficial, quase folclórica e etnográfica, que se satisfaz sendo meramente descritiva e contemplativa.
Não há uma única perspetiva de classificar a arte, ou nem toda a arte tem de querer mudar o mundo ou experienciar o sofrimento, a ideologia ou, sequer, opinião.

Mas esta aparente felicidade ao Sol de Sorolla, apátrida relativamente à ideologia, foi também um elixir para o nacionalismo autocrático que imergiu do sangue de um povo inteiro, quiçá demasiada luz junto ao mar para tanta escuridão nas vastas planícies do interior.
A diversidade talvez não canse, mas hoje percorremos milhares de milhas e dezenas de anos ao longo do imaginário europeu, e a nossa alma apenas serenou em frente às prateleiras dos grandes armazéns da Gran Via, noite adentro sem previsão de encerramento e as multidões que se acotovelam, indiferentes à escuridão que caía lá fora e, novamente à mesa, rodeados de uma multidão ruidosa e de uma gastronomia exuberante.




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