Como manifestação da condescendência divina - provavelmente com intervenção humana de quem nos conduz para longe do dilúvio - chegamos a Tabriz à hora do bazar, do homem que fazia perfumes, do outro que nos dava a provar todo o género de doces de sabores conhecidos, do cheiro a chás e especiarias, o mais antigo bazar da rota da seda, mil anos completos a comprar e a vender tapetes e tudo o resto, uma agitação que já é intemporal e coabita condescendente com todas as dinastias da história e com as diferentes soberanias a que resistiu.
Enquanto resistíamos à ideia de abandonar o bazar para voltar à estrada, direção fronteira, detivemo-nos junto ao jovem vendedor de sapatos, a primeira loja da rua dos sapatos, licenciado em engenharia mecânica por uma boa universidade iraniana convidado por uma universidade americana para efetuar doutoramento, mas que aguarda o visto que procura obter em viagens recorrentes ao consulado na Arménia, sim, porque o tio Sam não tem morada fixa por aqui. Levanta os braços para o ar e afirma que já não depende de mim e confessa quão triste a política pode ser, "deves ser muito bom para que os americanos te queiram pagar os estudos" e ele sorri tímido e agradecido por alguém lhe dizer o óbvio, do vendedor de sapatos da primeira loja do bazar de Tabriz.
É curioso como as coisas importantes funcionam para além da retórica e todos os povos utilizam os mesmos critérios de seleção.
E, de alma cheia, regressámos à rota das fronteiras terrestres, uma fantasia juvenil que se alimenta de anarquia e de vontade de superação de barreiras artificiais, um desafio que nos conduz ao triunfo da irreverência sobre a obediência cega dos burocratas empedernidos e da planície de movimentos livres sobre as montanhas da incompreensão que separam os povos deles mesmos e dos seus irmãos, que digam os curdos na fronteira de Bazargan.
Por tudo isso, e ainda mais a adrenalina pura sem ideologia, atravessar a fronteira de Bazargan a salto foi particularmente desafiante, uma rotunda que determinava o final do caminho com uma cancela que não era o fim do caminho, mas apenas uma porta para uma estrada de dois quilómetros até à fronteira a sério que, só na teoria, se podia fazer a pé e por isso havia um série de espécie de táxis, coordenados pelo único tipo que falava inglês na região, que levava a clientela estrada acima e trazia estrada abaixo.
Os negócios sucediam-se porque Bazargan é uma fronteira viva, especialmente do lado iraniano, nota-se à distância que os irmãos turcos são tolerantes com a necessidade de comerciar dos vizinhos, provavelmente porque pertencem a um povo tendencialmente comum.
Depois, tudo se decide entre pavilhões prefabricados e corredores impermeáveis, primeiro o funcionário mal encarado do Irão que carimba o visto e não o passaporte, olha nos olhos e finge reconhecer a nossa cara sem digitalização ou qualquer tratamento informatizado, depois finalizado o primeiro corredor, dois polícias iranianos pedem novamente o passaporte e o visto, mas o visto já tinha ficado no anterior e portanto ele vai verificar, para depois confirmar, pede o passaporte e manda-nos avançar para o segundo polícia que, a cinco metros do primeiro, pede novamente o documento para confirmar, abana afirmativamente a cabeça e manda avançar fechando, em seguida, a porta de correr, encerrando impetuosamente a fronteira, resumida a um gradeamento titubeante.
Enquanto me afundo no corredor seguinte, olho de soslaio e confirmo que, nas minhas costas, permanece o retrato do Ayatolah na sua irritante pose sorridente de Estado.
Duas curvas à frente, envolvemo-nos na bandeira vermelha e no quarto crescente e, para que não restassem dúvidas, enfrentamos de frente a pose solene de Estado e sem sorrisos do sultão Erdogan.
Do lado ocidental da fronteira, tudo digitalizado, carimbos no passaporte vermelho que, perante o funcionário laico é garantia de que não contrabandeamos mercadorias nem a revolução, e por isso temos um corredor livre que não nos obriga à inspeção física das malas, tratamento exclusivo para os irmãos iranianos, portadores de inúmeros sacos pretos e de corações cheios de alma mercantil.
E enquanto caminhávamos entre poças de água de nacionalidade turca e de tradição curda à procura do nosso transporte para Ocidente, as filas de camiões cruzavam-se connosco em sentido contrário e apitavam generosamente, todos sem exceção, agitando-se dentro das suas cabines, acenando-nos com aquela alegria que só vimos nos olhos do Irão profundo.
E naquela noite fria e húmida do Curdistão turco, eram os motoristas iranianos que se abanavam ao ritmo das poças e dos buracos, enquanto regressavam a casa, e nos agradeciam termos vindo e nos desejavam uma viagem segura de regresso a casa.
Não vimos os olhos deles, mas os sorrisos deles brilhavam na escuridão da noite.
Que Alá esteja convosco, magnifico povo do Irão
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