Consegui adormecer nas estradas
da India.
Quase mil quilómetros depois,
incapaz de processar, compreender, explicar e racionalizar os milhares de
imagens por minuto que me invadiam os olhos em tropel.
E refugiei-me nos sonhos, um
estado de letargia que é capaz de conciliar realidades sem preocupações de
coerência social, que habitualmente não deixam rasto, senão no nosso próprio
subconsciente.
O puto à boleia de pé em cima da
bicicleta, de farda da escola e mochila às costas foi a minha última recordação,
antes ou depois de adormecer.
Longe dos contos de fadas
encrostados na poeira e nos buracos, infiltradas nos vestígios dos múltiplos
impérios, espalham-se as artérias de um país imenso.
Segundo consta, mais de
seiscentos dialetos, uma religião que aceita mais de três milhões de deuses,
mas que se diz ser construída a partir do indivíduo.
Posto isto, é nas bermas das
estradas desta península que nasce, vive (e se preserva) e morre a grande
economia informal, o que os indianos eruditos apelidam de “uncorpored economy”.
Isto foi antes de adormecer,
quando procurava desesperadamente enquadrar a anarquia num sentido lógico.
Às nove da manhã, nas bermas da
estrada de Jaipur para Agra, idosas de saris coloridos e vassouras de ramos de
árvores varrem a terra batida à beira da via rápida, outros menos idosos
dispõem expositores de bambu forrados de coloridos plásticos que podem ser
doces e pastilhas, renovam-se as barracas de madeira, que se irão transformar
em salas de refeição ao ar livre, limpam-se as fileiras esporádicas de lojas
emparedadas por corredores de cimento escurecido, enfiadas em minúsculos metros
quadrados de indecifráveis profissões e setores de atividade, as panelas
começam a fumegar e o cheiro a caril impregna-se no alcatrão.
E preparam-se para o gigantesco
mercado interno que circula em múltiplas rodas pelas artérias envoltas em
nevoeiro do país.
Muitas vezes em não mais que
quatro patas ou três rodas.
Um olhar repentino vislumbra um
barbeiro de navalha afiada, uma cara cheia de espuma e uma cadeira de ferro
fundido.
E lembro-me da relação
privilegiada do barbeiro de Humayun, o segundo Imperador da dinastia Mughal.
Tão especial que lhe concedeu o direito a um lugar no Além junto da restante
família real.
Nada nestas bermas de estrada
escuras e lamacentas nos recorda o luxo dos palácios do imperador, mas
prevalece o poder da navalha e a barba feita como precedente de todas as
cerimónias religiosas importantes.
Penso que foi aqui, algures entre
o quilómetro quinhentos e quinhentos e cinquenta, que me rendi ao facto de
estar entranhado.
Sonhei com o velho que parecia
petrificado na encosta da linha do comboio mas que, afinal, tomava conta das
cabras, junto à via (relativamente) rápida, e com as mulheres que traziam lenha
à cabeça e caminhavam, decididas, para um lugar qualquer.
Acordei na noite de Jaipur e,
mais além, às portas de Agra.
Voltávamos a caminhar para Norte,
voltávamos a pressentir o nevoeiro de fim de dia que se confundia com os fumos que
abafavam a estrada.
Regressavam os cânticos, a música,
as buzinas e os motores, aproximávamo-nos novamente da diversidade religiosa,
os cânticos para a oração voltavam a sobrepor-se à anarquia hindu.
Tento acompanhar, mas entre o
desistir e o entranhar, escolho a segunda.
Agricultura milenar, mercados
frenéticos, por vezes na mesma estrada no mesmo quinhão, na mesma berma, gente
que dorme nas traseiras e vive à beira de um mar de movimento, entre os poços,
as noras, o cimento e o asfalto, ou apenas um jovem que, do terraço de um
casebre, espreita a paisagem e acena muito para todos os circulam na estrada.
E as pessoas insistem em avançar,
podem não saber o que o futuro lhes reserva, mas sabem o que o presente as
obriga.
Mesmo que a força da palavra
destino seja inexorável.
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