O seu riso era estridente, a sua postura altiva e compassada, a sua voz forte, a sua presença intimidante para quem a ele se dirigia em hindi.
J por simplicidade poderia ter
sido um dos grandes Mewar, uma dinastia de Reis que descendem, segundo dizem,
do Deus Sol.
Perante a nossa interrogação
cartesiana, J reformula.
Existem sempre espaços vazios na
história, que necessitam de ser preenchidos
Afinal de contas é uma dinastia
que reina há catorze séculos.
J não é Mewar mas é Guerreiro, o
segundo nível no sistema de castas, tal como o sempre foram os Mewar, desde
Reis com reino, a Reis mitológicos ou a empresários protegidos pela república.
Afinal de contas, na hierarquia
das castas, são como os generais do passado
Mas foram sempre os grandes senhores
de reinos menores, uma sobrevivência que se construiu de algumas batalhas, de
um sangue especial e de uma arte de fazer diplomacia, desde os mongóis aos
ingleses.
Em Udaipur cultiva-se o conto de
fadas, e os palácios dos reis perpetuam a santidade destas dinastias, perante o
povo e acima de um estado independente, uno e republicano.
J, assim como os outros
guerreiros reais, convivem bem com esta posição dúbia, entre o céu e a terra.
Como o Hinduísmo, que se constrói
de interpretações pessoais sob a sombrinha protetora da Trindade Hindu, dos sinais
da positividade e os cinco elementos.
E as quatro classes da sociedade
Hindu.
Debaixo deste chapéu,
aproximadamente três milhões de Deuses, conforme o contador de histórias.
Em Udaipur, o maior dos (antigos)
pequenos reinos do Rajastão, prevalece, sem medo do único dogma hindu vivo, a
estratificação das castas sem pudor.
Apesar da tolerância compreensiva
às diferenças de credo, do sistema diversificado de pensamento, as inconstitucionais
castas que prendem os humanos ao destino, confundem o espírito cartesiano e
humanista ocidental.
Não há no nosso glossário de
conceitos, a ideia de um pensamento diversificado numa rígida sociedade
estratificada.
Mas J não entende a nossa dúvida,
como não entende que lhe perguntem se, no limite desta pluralidade de
pensamento, não cabem os ateus.
Essa foi uma pergunta definitivamente
errada.
E porque os Deuses e os Reis
descendentes se representam com uma auréola santificada em todas as pinturas em
seda executadas pelos artistas da escola de arte do Rajastão, neste conto de
fadas que envolve o destino de um povo, as histórias épicas atravessam
gerações.
Como a do cavalo Chetak que,
ferido de morte, caminhou sempre para levar o rei para um lugar seguro,
derrotado de uma batalha com os Mogois.
Para depois morrer.
Como os artistas da escola de
artes o são, há muitas gerações.
Destino, reis mecenas e um culto
de santidade que está para além de um mundo de abismais diferenças sociais.
Como ilustrava o (futuro) Nobel
em “India – Um milhão de motins, agora” , a revolução só nasce se a crença que
alimenta os humanos, for uma crença igualitária.
Mas não é.
Mas neste mundo gigante, todas as
deserções à Trindade Hindu, foram punidas pela perda de fiéis e de
representatividade.
Um budismo entrincheirado entre
os Himalaias, o Jainismo encarcerado nos princípios da não-violência, em
templos divinais e numa vivência de contemplação distante da vida e da
sobrevivência.
Como diria, J com algum subtil e
não ostensivo desprezo, sempre que existem sacerdotes existem deserções e
separações, e “ no Hinduísmo não há sacerdotes”.
Confundido, tive de aceitar que
não havendo sacerdotes, as pessoas descobrem, através da sua livre e intima interpretação
do hinduísmo, que a estratificação é uma forma de garantir o livre pensamento e
de atingir, a partir dos cinquenta anos, o estado de pré libertação dos bens
materiais e, a partir dos setenta e cinco, a fase de preparação para a melhoria
da vida seguinte.
Sim, porque a alma é eterna e
utiliza os veículos que são os seres para passar de vida em vida.
Percebo que não é bem assim, mas
sem saber bem como.
E para que não restassem dúvidas,
os casamentos continuam a ser combinados, e absolutamente interditos entre
diferentes castas.
Bom, ele falou em oitenta e cinco
por cento.
A única sobranceria que eu quase
não perdoei a J, foi a omissão – pior, a negação quando interrogado – das ligações
familiares e de liderança espiritual de Ghandi ao Jainismo, uma religião igualitária,
aquela “religião de sacerdotes” que se enclausura nos templos da não-violência,
e que nasceu, tal como o Budismo há milhares de anos, da vontade de alguns em erradicar
a Védica inevitabilidade da eterna e imutável estratificação social hindu.
Até porque, segundo percebemos,
até ao século VI, as quatro classes (e mais os intocáveis) eram meros estados
transitórios, e simultaneamente ascensionais e descendentes, por onde se
catalogavam os humanos em função das suas ambições e capacidades.
E o destino nasceu depois, apesar
do Hinduísmo ser uma “religião sem sacerdotes”
E porque Ghandi é a maior das
reservas morais da contemporânea, independente e diversa mãe India.
Ao fim do quarto dia, já tinha a
certeza que nenhuma moeda tem apenas um lado, especialmente na India.
E J voltava a rir, estridente,
com o seu bigode afiado, o seu lenço de seda enrolado ao pescoço, a sua pose
real e um jeito meio infantil de bater palmas santificadas e guerreiras,
daquelas que por magia, ligavam as fontes dos lagos do jardim das princesas de
Udaipur!
Afinal não era magia, era apenas
trabalho camuflado de castas inferiores.
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